11/05/2007
Em 25 anos, a Igreja católica perdeu
um quarto dos seus fiéis na América Latina; para reverter
a tendência, Bento 16 optou por perseguir os teólogos da
liberação e "erguer barricadas" contra os evangélicos
Henri Tincq
Le Monde
É uma igreja latino-americana
em crise que Bento 16 está conhecendo de mais perto, de 9 a 14
de maio. Em Aparecida (a 167 km de São Paulo), o papa deve abrir
a quinta assembléia do Conselho dos Episcopados Latino-Americanos
(Celam), a primeira a ser realizada desde a de Santo Domingo (República
Dominicana) em 1992. Pela primeira vez, os responsáveis católicos
do subcontinente vão se enfrentar em torno da delicada questão
da sua erosão numérica em proveito das igrejas evangélicas
ou pentecostais, cujo crescimento e apetite por poder confundem os observadores.
Em 25 anos, a Igreja católica do Brasil teria
perdido um quarto dos seus fiéis. Todo ano, 600.000 pessoas a
deixam, ao passo que os evangélicos representariam até
18% da população. Esses números não levam
em conta aqueles que circulam de uma Igreja para outra, "católicos
evangélicos" ou "católicos candomblés",
do nome da religião tradicional de origem africana.
A força dos evangélicos atua tanto na
mídia quanto no plano político. Edir Macedo, um bispo,
chefe da Igreja Universal do Reino de Deus, controla a TV Record, que
é a terceira emissora mais importante em nível nacional,
além de dezenas de rádios locais e de um jornal gratuito,
distribuído aos milhões de exemplares. Reunidos no quadro
do Partido Republicano (PR), eles fizeram campanha pela reeleição
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e estão presentes
no governo, com José Alencar, o vice-presidente. Marina da Silva,
ministra do meio-ambiente, é membro do Movimento Progressista
Evangélico.
Na Argentina, em vinte anos, 4 milhões de fiéis
(10%) teriam se afastado da Igreja católica, ao passo que os
evangélicos representariam 10% da população, ou
o dobro nos bairros mais desfavorecidos das grandes aglomerações.
No México, desde 1970, a população católica
caiu de 10 pontos e o dinamismo dos evangélicos se traduz por
aquisições de imóveis e por operações
nos meios de comunicação. O clero católico conta
14.000 padres, ou seja, 1 para cada 90.000 habitantes. Por sua vez,
os pastores evangélicos, sejam eles auto proclamados ou formados
de maneira expeditiva, já são cerca de três vezes
mais numerosos.
Na América Central, o boom dos evangélicos
é ainda mais espetacular. Na Guatemala, as novas igrejas recrutam
nas populações de índios e faturam os benefícios
da sua participação do movimento contra a guerrilha durante
os anos 1960-1996. Os seus locais de culto crescem igual a cogumelos
na Nicarágua, no Honduras, no Salvador. As práticas sincretistas
também se espalharam no Haiti onde, desde 2003, o vodu é
reconhecido da mesma forma que as outras religiões, e em Cuba,
onde a maioria dos católicos pratica a "santeria",
o culto afro-americano local.
Como terá sido possível chegar a este
ponto? O catolicismo latino-americano por muito tempo serviu de modelo:
com um número recorde de fiéis - 40% dos católicos
em todo o mundo (1,1 bilhão) -, com a sua inventividade teológica,
o seu engajamento nas lutas sociais. Sem esquecer do martírio
sofrido por alguns dos seus representantes, vítimas das ditaduras
e dos conflitos dos anos 1970-1990 - no Chile, Argentina, Brasil, Haiti,
Salvador, Guatemala, Nicarágua.
Bispos (Dom Romero no Salvador, Dom Angeleli na Argentina);
padres, religiosos e religiosas (as francesas Alice Domont e Léonie
Duquet, "desaparecidas" sob a ditadura argentina de 1976-1983),
além de inúmeros militantes laicos, pagaram com a sua
vida o apoio não violento que eles deram às forças
de restauração da democracia, de defesa dos pobres, dos
camponeses sem terra e das populações indígenas.
Por ocasião das conferências dos bispos
do Celam em Medellín (Colômbia), em 1968, na presença
do papa Paulo 6º, e em Puebla (México) com João Paulo
2º, em 1979, uma minoria de bispos e de teólogos progressistas
havia conseguido impor uma "opção preferencial pelos
pobres", que foi encarnada a partir de então por "profetas"
tais como Dom Helder Câmara, um bispo do Nordeste brasileiro (morto
em 1999), Dom Proano, bispo dos índios no Equador, o cardeal
Silva Henriquez, arcebispo de Santiago (Chile), fundador do Vicariato
da Solidariedade sob a ditadura de Pinochet, Dom Samuel Ruiz, um advogado
dos maias do México.
Paralelamente, a Teologia da Liberação,
que nasceu no Peru com Gustavo Gutierrez, e se desenvolveu no Brasil
com os irmãos franciscanos Leonardo e Clovis Boff, e no Salvador
com o jesuíta Jon Sobrino - que Bento 16 acaba de sancionar mais
uma vez -, no Chile com Pablo Richard, e no México com Enrique
Dussel, tornou-se a ovelha negra dos estrategistas norte e sul-americanos
do anticomunismo, que nela enxergam uma espécie de bíblia
marxista para as guerrilhas da América Latina.
As repreensões e as sanções do
Vaticano, que obrigaram Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff a permanecerem
em silêncio, também contribuíram singularmente para
a "diabolização" desta teologia da liberação,
que, mais modestamente, pretendia ser uma análise da "força
histórica dos pobres" a partir da releitura dos textos bíblicos
conduzida no quadro de "comunidades eclesiásticas de base",
as quais são centros de educação popular, de catequese,
de liberdade e de resistência. Foi nesses meios católicos
que Lula da Silva, no Brasil, construiu o sucesso do seu Partido dos
Trabalhadores (PT).
Segundo informa a leitura dos documentos preparatórios
para a conferência episcopal de Aparecida do Norte, que será
aberta pelo papa, duas linhas dividem hoje o catolicismo sul-americano.
Primeiro, uma linha neoconservadora, representada por movimentos poderosos,
porém desiguais - a Opus Dei no Peru, os Legionários do
cristo, que nasceram no México -, por novas gerações
de bispos, por pregadores da Renovação Carismática,
tais como o célebre Padre Marcelo Rossi que, à moda pentecostal,
lota estádios brasileiros.
Para eles, a "politização" da
Igreja é amplamente responsável pela sua erosão
numérica. Ela alcançou as classes médias, os círculos
intelectuais e as forças de oposição, mas negligenciou
as necessidades espirituais das populações marginalizadas.
Isso teria beneficiado aos grupos evangélicos, mais dispostos
a formar "pastores", a enquadrar os bairros pobres com as
suas redes de ajuda comunitária, a prometer benefícios
imediatos em termos de saúde, de luta contra o álcool
ou as drogas.
Para esses neoconservadores, a solução
é a do "endurecimento": a Igreja católica não
deve ceder à pressão das suas concorrentes evangélicas.
Ela precisa permanecer ela mesma, retornar a um estrito formalismo nos
seus seminários, na formação dos seus laicos, nas
suas formas litúrgicas, na educação religiosa,
no seu combate em defesa da vida (contra o aborto, contra a contracepção).
Ora, por ocasião da última conferência do Celam,
em Santo Domingo em 1992, as correntes conservadoras e o Vaticano já
haviam imposto esta busca de um novo equilíbrio e uma linha de
"nova evangelização das culturas", uma decisão
que incluiu um investimento maciço na comunicação
e na formação, destinado a zonas urbanas e secularizadas.
Vem então a segunda linha, muito minoritária,
chamada de "profética", aquela que não se conforma
com a derrocada da "opção prioritária pelos
pobres". Em artigo publicado na revista espanhola "Adital",
na sua edição de fevereiro de 2007, o brasileiro Jung
Moi Sung - que faz parte da nova geração de teólogos
da liberação capaz de fazer a crítica da precedente
- escreve: "Nós somos obrigados a reconhecer que o sonho
acariciado pelas comunidades de base e a nossa teologia, segundo a qual
a massa dos cristãos na América Latina adotaria o cristianismo
de liberação, foram derrotados". Ele deplora que
"os métodos de marketing visando a aumentar o número
dos fiéis, se tornaram mais importantes do que o papel profético
do cristianismo na construção de uma sociedade mais juste
e mais humana". Mas ele não desiste do papel de vanguarda
que os cristãos são chamados a exercer nas lutas ecológicas,
junto às populações índias, às mulheres
e a todos aqueles que foram deixados por conta pelas economias neoliberais.
A "opção preferencial pelos pobres"
segue sendo a de bispos tais como Dom Amazzini no Honduras ou Dom Fernando
Lugo no Paraguai que, apoiado pela população, acaba de
renunciar à sua função para se candidatar na próxima
eleição presidencial. Na Venezuela, na Argentina, no Chile
ou em outros países, a Igreja católica também sabe
proteger a sua independência, luta contra a corrupção
política, participa das manifestações de rua, e
ainda aparece nas pesquisas como a instituição a mais
crível. Na Argentina, por exemplo, estão muito tensas
as relações entre a hierarquia e o presidente Nestor Kirchner,
criticado nos seus sermões pelo cardeal jesuíta José-Maria
Bergoglio, o arcebispo de Buenos Aires.
"Com a globalização, as idéias,
as religiões e as igrejas circulam", resume o Padre Philippe
Klöckner, responsável do Centro Episcopal França-América
Latina (Cefal). "Se a Igreja católica na América
Latina optou por erguer barricadas contra os evangélicos, ela
morrerá com as suas certezas".
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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