03/05/2007
Partes do Codex Sinaiticus, de 1.600 anos de
idade, e que inclui o primeiro Novo Testamento completo do mundo, estão
espalhadas entre Leipzig, Londres e São Petersburgo. Agora os
pesquisadores querem digitalizar os fragmentos e publicar o volume inteiro
na Internet.
Matthias Schulz
Em 1844, Constantin von Tischendorf, um pesquisador
da cidade alemã de Leipzig, viajou de camelo até o Cairo
passando pelo Deserto do Sinai.
Durante a árdua jornada de 13 dias ele viu "pegadas frescas
de tigre" e enfrentou tempestades de areia. Tischendorf ficou debilitado
devido à água estagnada "que afeta a parte inferior
do abdômen", foi picado por formigas e mosquitos e, em determinada
ocasião, a sua tenda foi simplesmente levada pelo vento.
Em maio daquele ano, a sua caravana chegou a uma serra
escarpada de montanhas de granito onde Deus - segundo o Êxodo
- apareceu para Moisés na forma de um arbusto incandescente.
O lugar estava marcado por uma fortaleza espiritual sombreada por ciprestes,
romãzeiras e oliveiras: o Monastério de Santa Catarina,
construído no ano 550 da nossa era. Um homem usando um robe da
Igreja Ortodoxa Grega surgiu na porta alta do monastério e içou
o hóspede com uma corda.
Pouco tempo depois, o aventureiro alemão escreveu
que uma "jóia de valor totalmente incalculável"
caiu em suas mãos. Quando ele puxou uma pilha de páginas
soltas de um cesto de lixo que continha peças danificadas de
um pergaminho, o seu coração quase parou.
A descoberta no sopé do Monte Sinai está
entre as grandes sensações da história científica
- e é considerada tão importante quanto a descoberta de
Tróia por Heinrich Schliemann e a escavação da
tumba de Tutancamon por Howard Carter. Após um total de três
viagens ao Egito o professor da Saxônia recuperou 400 páginas
de uma Bíblia em péssimo estado, incluindo cerca de um
terço do Velho Testamento e a versão completa mais antiga
do Novo Testamento. O mundo acadêmico definiu a descoberta simplesmente
como a "Número Um".
O livro, confeccionado com peles de animais, custou
a vida de mais de 350 vacas. Ele foi escrito com tinta preta e marrom
feita de bolotas esmagadas de árvores e fuligem. Os títulos
dos salmos e do Cântico dos Cânticos estão em vermelho,
e são "da maior elegância", para usar as palavras
de Tischendorf.
Uma história de grande aventura gira em torno
do Codex Sinaiticus. Foi concedida a Tischendorf uma audiência
com o papa. O tsar da Rússia lhe ofereceu dinheiro à vontade
e financiou a sua missão final. Porém, apesar da fama,
uma sombra paira sobre este homem, que alguns insistem em dizer que
foi um ladrão.
Livro fragmentado, reputação abalada
Atualmente partes da antiga Bíblia estão
espalhadas pelo mundo. Na cidade de Leipzig, no leste da Alemanha, encontram-se
43 páginas. Quando Tischendorf era vivo, 347 páginas foram
parar na Rússia, mas mais tarde Joseph Stalin as vendeu ao governo
britânico pelo preço recorde de 100 mil libras esterlinas.
Cinco páginas estão guardadas na Biblioteca Russa Nacional
em São Petersburgo. Outras 12 permanecem no Egito, no Monastério
de Santa Catarina, que ainda abriga a mais antiga comunidade intacta
de monges cristãos. Membros dessa comunidade celebram a missa
matinal sem interrupção há quase 1.500 anos.
Desde a sua descoberta, ninguém viu o livro como
uma peça única. Mas é provável que agora
tal situação mude. Teólogos e estudiosos de escritos
antigos juntaram forças em um projeto de grande escala para finalmente
montar um Codex Sinaiticus completo na Internet. Cada página
será novamente examinada, transcrita e digitalizada. A Fundação
Alemã de Pesquisa (DFG) contribuiu com 200 mil euros para a iniciativa.
No entanto, a opinião sobre Tischendorf é
tão nebulosa e surpreendente como as próprias páginas
antigas. Christfried Böttrich, especialista no Novo Testamento
da Universidade de Greifswald, na Alemanha, alega que "Tischendorf
foi um homem sem máculas e que está acima de qualquer
censura".
Mas os monges do Mosteiro de Santa Catarina têm
uma imagem menos benigna do pesquisador alemão. Para eles Tischendorf
roubou o manuscrito. "O Codex Sinaiticus foi roubado", foi
o título de uma matéria publicada em 2000 no "Sunday
Times" sobre uma conferência organizada por um comitê
parlamentar britânico criado para investigar a questão
de artefatos roubados. O príncipe Charles, que é presidente
da Fundação Santa Catarina, teria exigido que os manuscritos
fossem devolvidos ao Egito.
Ninguém nega que Tischendorf foi um mestre na
sua área. Em 1840, quando era um jovem médico, ele descobriu
a chave para a tradução de uma Bíblia do século
cinco, em Paris, que era considerada indecifrável. O mundo acadêmico
ficou estupefato. Mas reservadamente vários acadêmicos
consideravam Tischendorf um sabichão que tinha conhecimento sobre
várias disciplinas.
Ele fez mais inimigos com o seu campo de trabalho. À
época os britânicos estavam realizando entusiasmadamente
pesquisas na Terra Santa em busca de velhos manuscritos e registros
antigos relacionados ao Messias. Mas durante a sua primeira expedição,
em 1844, Tischendorf viajou sozinho até antigas igrejas cópticas
no deserto líbio, procurando - e trazendo para casa - páginas
frágeis de manuscritos.
Tischendorf era uma figura bem vestida, quase burguesa.
Ele usava gorro e acreditava que a sua missão era sagrada ("Vou
em nome do Senhor"). Na sua segunda viagem, em 1844, ele foi ao
Monte Sinai e descobriu um total de 129 páginas em um cesto de
lixo na biblioteca do Monastério de Santa Catarina. O abade deixou
que ele ficasse com 43 páginas, e o jovem voltou à Alemanha,
onde foi recebido como um herói.
Mas ele não conseguiu deixar de pensar nas cerca
de 86 páginas que deixou para trás.
Porfiri Uspenski, um clérigo russo barbudo e
acadêmico famoso, estava viajando ao Egito na época. Uspenski
trabalhava para o órgão que controla a Igreja Ortodoxa
Russa, o Sínodo Sagrado. Ele visitou duas vezes o monastério
do Monte Sinai, em 1845 e em 1850, e os monges lhe deram cinco páginas
do Codex, que atualmente estão em São Petersburgo.
Em 1853 Tischendorf fez as malas e viajou de volta ao
monastério. Essa viagem foi desapontadora. Ele só foi
capaz de achar um pequeno fragmento do manuscrito - que era usado pelos
monges como marcador de livro. O resto havia desaparecido. No entanto,
seis anos depois, ele retornou em grande estilo, patrocinado pelo tsar
da Rússia, e foi capaz de distribuir propinas "como um príncipe
russo", de acordo com as suas palavras.
Essa missão quase resultou em fracasso. Não
parecia haver qualquer sinal do Codex. Tischendorf já havia reservado
os camelos para o percurso de volta quando o abade convidou o hóspede
a vir até a sua sala para um último drinque. O monge tirou
um punhado de papéis de um pano vermelho e mostrou a Tischendorf
não só as páginas que este havia deixado para trás,
mas outras 260 peças do manuscrito.
Tischendorf ficou pasmado. À luz pálida
do luar, ele folheou a cópia mais antiga de Jeremias, do Apocalipse
e das Epístolas. "Meus olhos estavam cheios de lágrima
e eu fiquei mais feliz do que em qualquer outra ocasião na minha
vida", escreveu o pesquisador. Tischendorf foi até o abade
e lhe ofereceu 10 mil thalers, mas o clérigo recusou-se a vender
o documento.
No entanto, ele permitiu que o professor pegasse emprestado
o manuscrito quase completo, de forma que este pudesse ser reproduzido
e impresso na Europa. O abade pediu um recibo e fez com que o alemão
prometesse entregar as páginas de volta o mais rapidamente possível.
Mas Tischendorf teve uma outra idéia: Não seria maravilhoso,
disse ele, presentear o tsar com os documentos manuscritos para comemorar
o aniversário de 1.000 anos da monarquia russa? Ele garantiu
ao abade que isso traria ao mosteiro fama, boa fortuna e dinheiro. Os
monges teriam concordado.
"Infelizmente esse plano para o presente não
foi adiante", afirma Böttrich, o especialista no Novo Testamento.
Pessoas descontentes na corte de São Petersburgo foram contra
a idéia, e dez anos depois as páginas ainda estavam no
Ministério das Relações Exteriores da Rússia.
O arcebispo do Sinai, que era o responsável pelo monastério,
só assinou um acordo entre os monges e a corte russa em 18 de
novembro de 1869. A irmandade recebeu 9.000 rublos em ouro em troca
- e aparentemente eles também queriam um navio a vapor.
Vários detalhes em torno do acordo ainda não
foram inteiramente explicados. A nota de presente desapareceu, e os
registros relativos à transferência do Codex estão
atualmente nos arquivos do Estado russo, onde Natalya Smelova, integrante
do projeto da Internet, os está analisando.
O Codex, praticamente completo
O projeto segue a todo vapor em Leipzig. Usando luvas
de tecido branco, o conservador Ute Feller remove as páginas
uma a uma de uma caixa de depósito que fica no porão.
Inspetores munidos de lupas organizam arduamente uma lista de dobras
e manchas. Cada abrasão, nota de margem e rasgão no manuscrito
é anotado.
Enquanto isso, especialistas na Biblioteca Britânica,
em Londres, estão usando instrumentos científicos para
examinar o Codex da mesma forma que patologistas inspecionam um cadáver
misterioso. Eles pretendem usar análise multiespectral para revelar
traços escondidos de tinta, e buracos nas páginas podem
responder a outras questões: quando esse magnífico trabalho
se fragmentou? Como era a sua capa?
Até mesmo os reclusos monges do Sinai estão
envolvidos nesse esforço gigantesco. Durante uma obra de construção
na abadia, em 1975, surgiu uma sala cheia de detritos na qual foram
encontradas partes adicionais do Codex Sinaiticus. Esse material foi
mantido sob rigorosa proteção e não podia ser examinado
por acadêmicos - até agora.
Toda a pesquisa - que também envolve especialistas
norte-americanos e russos - lançou luz sobre aquilo que muitos
consideram um dos primeiros livros do mundo. Ele foi criado entre os
anos 330 e 350 da era cristã. Os escribas teriam se sentado a
pequenas mesas, munidos de frascos de tinta e de lápis, rabiscando
linhas de letras maiúsculas gregas sobre as peles claras de animais.
O "Escriba A" foi o mais original. Ele escreveu com letras
floreadas, mas foi negligente, esquecendo-se de quatro páginas
do Evangelho de São Lucas. Ele simplesmente eliminou a famosa
definição de amor na Primeira Epístola de São
Paulo aos Coríntios. Teria isso sido intencional? O "Escriba
D" percebeu os erros e acrescentou o texto que estava faltando
na margem.
Mas quem teria encomendado o trabalho? Vários
pesquisadores acreditam que a ordem veio diretamente de Constantino,
o primeiro imperador romano cristão. No ano 313 ele suspendeu
todas as sanções estatais contra aquela religião
que à época era perseguida como um "culto judeu".
Ele ordenou a construção de diversas igrejas, e tinha
50 Bíblias magníficas feitas para disseminar pelo Império
Romano a religião pouca conhecida baseada no amor fraternal.
O Codex pode ter sido escrito durante esse período.
A seção do Novo Testamento do Codex prova
como ele é antigo. Ela inclui não apenas o texto usual,
mas também dois capítulos apócrifos, que mais tarde
foram removidos pelos fundadores da igreja. A Epístola de Barnabás
foi escrita por um aluno dos apóstolos, e o Pastor de Hermas
consiste de cinco visões do apocalipse escritas no início
do século dois.
Os pesquisadores pretendem apresentar os seus resultados
ao mundo até 2010 usando um website. Centenas de milhares de
palavras terão que ser traduzidas e digitalizadas até
lá. O trabalho é lento, e alguns monges do Monte Sinai
ainda ficam furiosos ao ouvir o nome Constantin von Tischendorf.
"Os especialistas passaram os últimos dois
meses trabalhando em um pequeno relatório sobre a história
inicial do manuscrito", afirma uma pessoa que está envolvida
no projeto. "O texto é de apenas uma página, mas
eles simplesmente não conseguem concluí-lo".
Ele explica o motivo para a demora: "Todo tipo
de consenso desaparece todas as vezes que alguém decide como
escrever algo a respeito da situação legal do manuscrito".
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