30/04/2007
Tutela indevida
Washington Castilhos
Desde os tempos em que era chefe
da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger
responsabiliza a Teologia da Libertação pela perda de
influência da Igreja Católica na América Latina.
Por isso, especialistas acreditam que a punição imposta
ao teólogo Jon Sobrino seja uma mensagem de Bento 16 à
igreja latino-americana. O Vaticano identifica vários sintomas
desse enfraquecimento. Se um deles é o crescimento das igrejas
evangélicas e de outras expressões religiosas, outro é,
sem dúvida, a mudança de mentalidades e normas frente
a questões em relação às quais o Vaticano
tem mantido posições dogmáticas inabaláveis,
como é o caso do aborto.
Em seu discurso aos participantes na Assembléia
Geral da Pontifícia Academia para a Vida, realizada em fevereiro,
Bento 16 fez um “apelo à consciência cristã”,
e reiterou seu temor em relação à questão
da descriminalização do aborto no mundo, particularmente
na América Latina. “É necessário admitir
que os ataques contra a vida, no mundo inteiro, se ampliaram e multiplicaram,
adquirindo também novas formas. São cada vez mais vigorosas
as pressões para a legalização do aborto nas nações
da América Latina e nos países menos desenvolvidos, mesmo
com o recurso à liberalização das novas formas
de aborto químico, sob o pretexto da saúde reprodutiva”.
O Papa está, de fato, correto. A ampliação do debate
sobre a descriminalização do procedimento se intensificou
na região nos últimos anos. Além de processos muito
ricos de mobilização e debate em curso no Uruguai e na
Argentina, a Corte Constitucional da Colômbia – país
onde a influência da Igreja Católica sobre a política
sempre foi acentuada e o aborto era proibido sob qualquer circunstância
– assegurou o acesso ao aborto em casos de má-formação
fetal, estupro ou risco de vida para a mãe em 2006.
Mais relevante ainda, a Assembléia do Distrito
Federal do México aprovou, no dia 24 de abril de 2007, por 46
votos a favor e 19 contra, um projeto de lei que legaliza o aborto.
Poucos dias antes da votação o Papa enviou uma carta aberta
aos bispos mexicanos apelando para que impedissem, a qualquer custo,
a reforma legal. A carta foi interpretada por parlamentares de vários
partidos como grave desrespeito ao Artigo 113 da Constituição
Mexicana que define a separação entre Estado e Igreja.
Em decorrência, a Secretaria de Governo (Secretaria de Gobernación)
pediu a hierarquia católica que evitasse excessos. A ativista
LGBT mexicana, Gloria Careaga, avalia que: “Essa ingerência
da Igreja deu mais força às vozes que sempre disseram
que a laicidade do Estado deveria ser respeitada para que o aborto seja
tratado como uma questão de política pública”.
(Para saber mais a respeito clique aqui)
No caso específico do Brasil, o Projeto de Lei
1135/91 (calcado na proposta elaborada por uma comissão formada
pelo Executivo, em 2005, para rever a legislação sobre
o aborto no país) encontra-se em tramitação na
Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara
Federal. Porém muito mais significativo foi assistir, nas semanas
que precedem a visita do Papa, o novo Ministro da Saúde, José
Gomes Temporão, fazendo inúmeras declarações
acerca do aborto como grave problema de saúde pública
e apelando para que a sociedade debata a questão, inclusive através
de um plebiscito.
É preciso lembrar que muito antes da declaração
do ministro, a Igreja Católica e seus aliados contrários
à legalização do aborto vinham se organizando nos
mais diferentes espaços sociais e institucionais. Em 2005, quando
encerrou-se o trabalho da Comissão Tripartite, o governo não
apresentou o projeto de lei ao Congresso como proposta do Executivo
ao Congresso e imediatamente após a apresentação
essas forças se mobilizaram constituindo uma Frente Parlamentar
para Defesa da Vida que conta com vários membros da base governista.
Nas eleições gerais de 2006 parlamentares que defendem
a legalização do aborto foram abertamente atacados.
No final de março de 2007, o Movimento Nacional
em Defesa da Vida (Brasil sem Aborto), liderado pela Igreja Católica
e a Federação Espírita Brasileira, mobilizou um
ato público em São Paulo divulgado através de outdoors
espalhados por toda a cidade com os dizeres: “Diga não
ao aborto até o 9º mês”. O slogan tinha como
objetivo projetar uma imagem distorcida do projeto de descriminalização
do aborto (PL 1135/91) que tramita na Câmara Federal. O texto
defende a descriminalização do aborto quando realizado
até a 12ª semana de gravidez, prazo que pode ser ampliado
para 20 semanas em casos especiais, como grave risco à saúde
da gestante, gravidez por estupro e malformação congênita
incompatível com a vida ou doença fetal grave e incurável.
Mas não propõe em nenhuma de suas linhas que o aborto
possa ser realizado até o nono mês.
Após a declaração do Ministro esses
ataques e reações, naturalmente, recrudesceram. Há
duas semanas, o ministro foi surpreendido por um protesto contra o plebiscito
na cidade de Fortaleza. No Rio de Janeiro, o cardeal-arcebispo D. Eusébio
Scheid interrompeu a celebração da Paixão de Cristo,
na Sexta-feira Santa, para falar contra o aborto. Não cabe dúvida,
portanto, que o tema será uma das questões chave da 5ª
Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe, que vai
ser aberta pelo Papa no dia 13 de maio, na cidade de Aparecida do Norte.
O encontro definirá a linha doutrinal e as ações
da hierarquia católica para os próximos 12 anos e vários
analistas sugerem que seu maior objetivo é aprofundar o controle
burocrático sobre a igreja latino-americana e influir na vida
política e eclesiástica da região.
Mas para várias analistas, ao interpretar o avanço
recente observado no debate sobre o aborto e a contracepção
como sendo resultado do enfraquecimento da Igreja na região,
o Vaticano desconsidera ou minimiza o significado das lutas sociais
por direitos humanos e de cidadania. “Reconhecer os direitos reprodutivos
como direitos humanos foi uma conquista da humanidade. É o direito
da pessoa vivenciar a sua sexualidade sem coerção, sem
violência e com garantia da sua saúde. A sociedade está
se libertando da tutela da Igreja em áreas da vida em que considera
a tutela indevida, e isso é um avanço”, analisa
a socióloga Maria José Rosado, da organização
não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir. Margareth
Arilha, diretora do PROSARE, programa de bolsas de pesquisa em sexualidade
e saúde reprodutiva, faz a mesma avaliação: “A
sociedade não é totalmente determinada pela Igreja Católica,
é constituída por atores sociais e políticos que
têm outras visões de mundo e interpretações
da realidade, e que vão favorecendo possibilidades de flexibilização
das posições emitidas pelo Vaticano”,
Da mesma forma, Dulce Xavier, também integrante
da organização Católicas pelo Direito de Decidir
considera que: “Pensar sexo e reprodução fora do
âmbito privado, da decisão individual, e colocá-los
no âmbito da legislação e dos direitos é
um salto que foi dado pelo movimento feminista, incorporado pelos Estados”.
Segundo ela o que ainda falta é que essa perspectiva seja incorporada
pela população de forma mais ampla: “O tabu em torno
da descriminalização do aborto é um problema cultural,
e a religião tem uma grande parte na construção
dessa cultura. As pessoas só pensam dentro dos parâmetros
que o cristianismo colocou no Ocidente”, aponta a socióloga.
As percepções da sociedade
Resultados de pesquisas de opinião, contudo,
sugerem que a resistência cultural, de fato, pesa bastante no
imaginário social. Em pesquisa do instituto Datafolha realizada
com 5.700 pessoas no fim de março, 65% dos entrevistados acham
que a lei no Brasil deve continuar como está – que permite
a prática em casos de estupro ou risco de morte para a mulher.
A socióloga Maria Betania Ávila, coordenadora do SOS Corpo-Instituto
Feminista para Democracia, avalia esse resultado como sendo um claro
efeito da propaganda subliminar que se faz no Brasil em relação
ao tema. Em entrevista para o jornal Folha de São Paulo, ela
lembra que: “A novela ‘Páginas da Vida’, que
acabou há um mês, fez com que os piores vilões aparecessem
defendendo que a mocinha da trama fizesse um aborto. Todos os personagens
decentes eram contrários. Foi um panfleto anti-aborto na TV recordista
de audiência”. (Fonte: Mulheres de Olho)
Um dos membros da comissão criada em 2005 para
rever a legislação relativa ao aborto, o médico
e professor de genética humana da USP Thomaz Gollop pensa que
a população se posiciona contrária à legalização
do aborto por falta de informação. “Se perguntarmos
se uma mulher que fez aborto deveria ir para a cadeia, provavelmente
as pessoas responderiam que não. Mas quando perguntamos se a
lei deveria ser revista, elas se colocam contrárias não
por convicção, mas porque não têm idéia
do que isto significa”.
Gollop tem razão ao indicar que as pesquisas
de opinião, geralmente, não captam a dinâmica mais
fina da percepção social sobre o aborto. Resultados de
estudo realizado pela organização Católicas pelo
Direito de Decidir no Brasil, por exemplo, mostram a ambivalência
na posição dos próprios católicos: 78% dos
católicos brasileiros entrevistados mostraram-se favoráveis
à oferta de aborto legal nos serviços públicos
de saúde, 82% afirmaram concordar com a realização
do aborto em caso de risco de vida da mulher, 80% em caso de problemas
congênitos e 67% se a gravidez resultar de estupro. (fonte: Pesquisa
de opinião dos católicos brasileiros sobre direitos reprodutivos,
relação Igreja e Estado e temas relacionados - clique
aqui para saber mais)
Esses dados sugerem que a sociedade foi, de fato, sensibilizada
pelo argumento desenvolvido pelas vozes que assim como o Ministro da
Saúde consideram que a questão deve ser retirada do campo
criminal e da lógica do pecado para ser encarada de frente como
uma questão de saúde publica. “Principalmente porque
quem vive o drama são as mulheres de baixa renda, que têm
de se submeter a abortos clandestinos. Devemos discutir o tema sob uma
ótica medica e visão de realidade, mostrando o que acontece
na prática”, avalia Thomaz Gollop. Estima-se que cerca
de 1 milhão de abortos clandestinos sejam realizados a cada ano
no Brasil, representando a 3ª causa de morte materna no país.
Em 2005, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou 230
mil internações por curetagem, que significam um custo
de 30 milhões de reais por ano.
O determinismo biológico
Segundo Maria José Rosado, dois obstáculos
fazem com que dificilmente a Igreja Católica venha a adotar essa
perspectiva. O primeiro deles é a própria estrutura hierárquica
da instituição: “A instituição católica
se funda na necessidade de uma intermediação entre o fiel
e a divindade, representada pelo padre. O fiel não se dirige
diretamente a Deus, mas o faz através do padre e as mulheres
estão excluídas desse lugar de intermediação.
Enquanto a Igreja mantiver este tipo de estrutura, será impossível
para ela ter uma visão da sexualidade mais positiva, mais liberal
e aberta, porque isto toca na sua estruturação”.
O outro obstáculo, segundo ela, são os
séculos de tradição da concepção
das mulheres como seres reprodutores. “É uma sexualidade
regulada pela reprodução. Não é uma sexualidade
livre, e sim dirigida à procriação, e que continua
sendo o ideário da igreja. Embora tenha havido um relativo avanço
em relação a isso, no fundo esse vínculo entre
sexo e reprodução se mantém, por isso a sexualidade
nunca pode ser livre, autônoma e dirigida ao prazer. A teologia
moral não avançou”, diz ela. Para Maria José,
se a maternidade não for “desnaturalizada” não
será nunca possível pensar o aborto como uma questão
que se situa no campo de uma ética da autonomia. “Enquanto
a maternidade continuar sendo concebida como algo da natureza das mulheres,
a qual elas têm que responder obrigatoriamente e têm que
se explicar quando decidem não serem mães, não
conseguiremos colocar o aborto no campo da escolha. É preciso
que a maternidade seja pensada nesse campo, para que então o
aborto seja de fato uma questão de escolha. O aborto é
solução diante de uma gravidez indesejada, impossível
de ser levada adiante. Mas será impossível a sociedade
enxergar desta forma enquanto não passarmos a pensar a maternidade
como escolha. A maternidade deveria ser colocada como um projeto de
vida, um desejo ou uma realização”.
No livro “Tiros cruzados: a laicidade à
prova do fundamentalismo judeu, cristão e muçulmano”,
as autoras Caroline Fourest e Fiammetta Venner identificam uma clara
convergência entre as três religiões monoteístas
mundiais – o judaísmo, cristianismo e o islamismo –
em relação ao que “deve” ser o papel da mulher
em uma sociedade: um papel de subordinação e de submissão.
Os documentos lançados pelo Vaticano em anos recentes ilustram
o quanto a percepção de Fourest e Venner é legítima
no que diz respeito ao catolicismo. Em carta aos bispos da Igreja Católica
discorrendo sobre a colaboração do homem e da mulher na
Igreja e no mundo – publicado quando o Cardeal Ratzinger ainda
era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
– afirma-se que a busca de autonomia das mulheres é um
mal porque gera a desagregação das famílias e as
distanciam do “determinismo biológico” que faz delas
fundamentalmente “mães” . No capítulo intitulado
“O problema”, o texto critica severamente uma certa “antropologia,
que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher,
libertando-a de todo o determinismo biológico, mas que acabou
de fato por inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionamento
da família”.
Segundo Dulce Xavier essa formulação reflete
“um pensamento negativo sobre as mulheres, como se elas não
tivessem outra função no mundo que não seja estar
submissas aos homens ou se prestar a maternidade. É como se elas
não fossem humanas e não tivessem qualquer possibilidade
de ter uma vida autônoma. Para o Papa, a sexualidade é
uma coisa negativa, que precisa ser controlada dentro do casamento.
A condenação dos métodos contraceptivos –
pílula, preservativo – é uma condenação
da possibilidade da liberdade. Segundo essa teologia, quando as pessoas
têm relações sexuais sem o compromisso com a procriação,
elas tendem à promiscuidade”, observa.
As múltiplas interpretações
do “direito à vida”
No Brasil e no mundo, para fazer frente às proposições
que visam descriminalizar o aborto, a Igreja Católica lança
mão de dois fundamentos doutrinários: o primeiro deles
é que sexo quando não se destina à procriação
deixa de recriar a imagem do céu na terra e se aproxima da perversão.
O texto da Encíclica Deus Caritas Est, tornada pública
em dezembro de 2005, afirma inúmeras vezes que o amor que não
procria é um amor fraco. O segundo argumento se apóia
no conceito de direito à vida acoplado à posição
dogmática de que a vida começa no momento da fecundação.
Em 2004, no Brasil, o tema do conflito entre o direito
do feto e o direito da mulher ganhou grande visibilidade num debate
que teve lugar no Supremo Tribunal Federal (STF). Em junho daquele ano,
a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde
(CNTS) apresentou à corte mais alta do país uma Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), um instrumento jurídico
que permite que a sociedade interpele diretamente o Supremo. O objetivo
da ação era garantir à gestante “portadora
de feto anencefálico” o direito à antecipação
terapêutica do parto, sem necessidade de apresentação
prévia de autorização judicial ou qualquer outra
forma de permissão específica do Estado. Um mês
depois, o ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, concedeu a
liminar – autorização de caráter provisório
– pedida pela CNTS, o que gerou intensa mobilização
de grupos pró-vida católicos. Quatro meses depois, essa
liminar seria derrubada pelos ministros do Supremo Tribunal, por sete
votos a quatro. Embora em abril de 2005, numa reunião plenária,
a ADPF tenha sido julgada procedente, passados dois anos seu mérito
ainda não foi julgado.
Para a diretora do Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero (Anis), Débora Diniz, parceira da CNTS
na apresentação da ADPF, se existe um conflito de princípios,
ele deve ser processado com base numa perspectiva argumentativa: “Isto
é que faz a democracia. O fato de não haver uma única
resposta sobre o início da vida, não significa não
haver uma resposta melhor que a outra. Podemos partir de um consenso:
o embrião tem forma de vida. Mas e daí?”.
Miriam Ventura, advogada e mestre em bioética
também analisa os argumentos da Igreja como sendo expressão
de “uma ética naturalista, que defende o status do feto
como de uma pessoa. Eles se baseiam em argumentos naturalistas. Mas
não podemos mais fundamentar questões em dogmas religiosos
e sim pela racionalidade. Uma possibilidade de vida não pode
ter mais direito do que uma pessoa”. Para ela, a questão
do aborto deve ser discutida a partir da premissa de liberdade individual,
prevista no artigo 5º da Constituição Brasileira,
o qual estabelece que “todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à segurança
e à propriedade”. Para Ventura, “o direito à
vida desde a concepção não está na lei.
Defendo a autonomia do sujeito como valor. Não temos que discutir
se um feto tem vida ou não, e sim o valor que a sociedade deve
dar a essa vida. O valor da vida não é absoluto. Acredito
no sentido de vida dado pela Constituição que é
o de uma vida digna, social. O sentido de vida não deve ser visto
pelo sentido biológico, naturalista como a Igreja enxerga. A
vida é um valor social. Quando defendemos o aborto por anencefalia
trabalhamos com o dado científico da inviabilidade fetal. Então
a questão é: devemos privilegiar uma possibilidade de
vida por uma vida que já existe?”
Vale lembrar que mesmo ponto de vista da ciência,
não há uma posição unívoca sobre
o início da vida humana e muito menos da condição
de pessoa humana. “Não há dúvidas de que
há vida em duas células que se juntam. No entanto, a questão
central trazida pela Ciência é reconhecer a partir de que
momento esta vida é moralmente relevante. Uma célula viva
tem a mesma relevância do que o individuo?”, argumenta o
médico sanitarista Sergio Rego, coordenador do Comitê de
Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública.
Significativamente nesse momento em que uma vez mais se aquece o debate
sobre aborto no país o Supremo Tribunal Federal convocou uma
audiência pública para debater a questão das células
tronco e o começo da vida, outro tema em relação
ao qual ciência e religião, progressistas e conservadores
tem se confrontado abertamente no Brasil e no mundo. (Para saber mais
veja: Mulheres de Olho e FAPESP)
Embora a posição oficial da Igreja ser
visceralmente dogmática em relação ao começos
da vida há vozes católicas de peso que expressam visões
distintas. Por exemplo, o teólogo brasileiro Leonardo Boff, um
dos mentores da Teologia da Libertação, condenado em 1985
pelo Vaticano ao “silêncio obsequioso” afirma em texto
recente: “Não podemos nos contentar com essa visão
assumida oficialmente pela Igreja nos dias atuais. Na Idade Média
não era assim, pois para Tomás de Aquino a humanização
começava apenas 40 dias após a concepção.
A Igreja, para efeito de sua ética interna, pode estabelecer
um momento da concepção da vida humana” (fonte:
Em Defesa da Vida: aborto e direitos humanos, Católicas pelo
direito de decidir).
O exemplo de Portugal exige reflexão
Às vésperas da chegada de Ratzinger ao
Brasil, a aprovação pelo Parlamento português da
descriminalização do aborto para gestações
de até dez semanas, causou uma onda de entusiasmo no cenário
nacional e o tema do aborto tem ocupado as capas dos principais jornais
e revistas do país. A recente experiência é, inclusive,
um dos argumentos utilizados pelo Ministro da Saúde, José
Gomes Temporão, ao sugerir a realização de um plebiscito
para decidir sobre a legalização do aborto no país.
As declarações do ministro, por um lado,
foram amplamente apoiadas pelas organizações feministas
e outras vozes. Em reunião regional latino-americana convocada
pela OPAS para discutir temas relacionados à Comissão
da OMS sobre Determinantes Sociais da Saúde, a Rede Feminista
de Saúde e Direitos Reprodutivos apresentou uma carta pública
de apoio ao ministro que foi aclamado por outras organizações
de mulheres presentes. Mas, por outro lado, mobilizou um intenso debate
entre aquelas e aqueles que defendem a legalização dentro
e fora do campo feminista.
A própria Ministra Nilcéa Freire, da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres, entrevistada pelo jornal
Estado de São Paulo afirmou que “Não parece apropriado
discutir, a priori, o plebiscito. Se no desenrolar do debate a consulta
popular for considerada importante, aí não há motivo
para que ela não seja realizada”. Débora Diniz também
apela para a cautela, sublinhando que um plebiscito é adequado
para equacionar questões relacionadas ao ordenamento político,
mas não para dirimir as diferenças de visão em
relação ao aborto: “O aborto deve ser pensado a
partir do marco constitucional do pluralismo que assegura o direito
de voz às minorias. O plebiscito torna-se uma falsa expressão
de democracia quando se confunde democracia por representação
de maioria. Se o marco constitucional máximo da razão
pública não for capaz de enfrentar essa questão,
vamos então para o legislativo”.
Em carta ao jornal O Estado de São Paulo, a pesquisadora
da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA)
e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política,
Sonia Corrêa, também afirmou que a proposta de um plebiscito
exige reflexão cuidadosa. Se de um lado abre campo para que forças
favoráveis à legalização dialoguem amplamente
com a sociedade, de outro o aborto não é questão
que possa ser resolvida pela imposição de maiorias sobre
minorias. Também considera que se o resultado do plebiscito em
Portugal deve ser comemorado, é preciso bastante cuidado ao fazer
analogias com o caso brasileiro:
“Na União Européia, da qual Portugal
é parte, a quase totalidade dos países conta com legislações
liberais e existe um sistema transnacional de direitos humanos que
cobra consistência das leis nacionais. Se Portugal não
tivesse reformado sua legislação, muito possivelmente
a Corte recriminaria o país. Estamos muito longe de dispor
de um ‘sistema’ de regulação e convergência
das leis nacionais como este”.
Se, por um lado, a Ministra, Débora e Sonia foram
cautelosas, outras feministas avaliam o atual contexto político
do país um bom momento para a realização de um
plebiscito. “Penso que poderia ser um momento interessante para
que a sociedade brasileira se olhasse no espelho. A idéia do
plebiscito sempre foi muito assustadora até mesmo para os grupos
pró-vida. É uma estratégia que assusta de parte
a parte, mas particularmente penso que a sociedade deveria analisar
o que pode sair daí. O plebiscito pode dar uma idéia mais
precisa onde nós estamos”, avalia Margareth Arilha. Maria
José Rosado concorda. “Eu me pergunto se a sociedade já
não avançou o suficiente na consciência de seus
direitos e autonomia em face da tutela da Igreja para se tentar um plebiscito”,
defende.
Também em entrevista ao jornal O Estado de São
Paulo, Carmem Barroso, diretora da Federação Internacional
de Planejamento Familiar (International Planned Parenthood Federation-IPPF),
afirmou ser a favor do plebiscito. “Sei de pessoas, defensoras
do direito ao aborto, que não acham o plebiscito oportuno. Mas
ele leva a população a pensar sobre o assunto e a tomar
uma posição. Ainda que se corram riscos, o debate é
um progresso. Veja o que aconteceu em Portugal: lá teve um plebiscito
e não passou. Alguns anos depois, teve outro e passou. É
o processo que conta”, disse.
Finalmente é importante dizer que a Igreja, de
seu lado, se posicionou firmemente contra o plebiscito. O arcebispo
de São Paulo e secretário-geral da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil), d. Odilo Scherer, explicou essa posição
a partir de uma perspectiva doutrinária afirmando em entrevista
ao jornal Folha de São Paulo que é absurdo “colocar
em plebiscito o direito de matar”. Para Sonia Corrêa, essa
posição doutrinária esconde um cálculo político
que não deveria ser minimizado: “O Vaticano não
visa apenas derrotar a proposta de legalização. A Igreja
tem um objetivo muito mais ambicioso: quer eliminar todo e qualquer
permissivo penal. Isso aconteceu em outubro de 2006 na Nicarágua
quando – por pressão da Igreja e com franco apoio de Daniel
Ortega – o Congresso baniu a cláusula que permitia o aborto
no caso de risco de vida que constava no código penal desde o
século 19. O mesmo pode acontecer na Polônia nos próximos
meses. No Brasil, onde 65 % dos e das potenciais eleitoras expressam
opinião de que a lei não seja alterada, a realização
de um plebiscito pode resultar na manutenção da lei como
está, o que frente a esse objetivo radicalmente regressivo poder
ser lido como uma derrota da Igreja. Exatamente por isso, embora minha
posição em relação ao plebiscito seja de
cautela, não tenho dúvida que estamos vivendo um momento
privilegiado da longa e sinuosa trajetória da luta pela legalização
do aborto no Brasil”.
Os contornos do debate em curso são, de algum
modo, surpreendentes. Desde a apresentação, em setembro
de 2005, do projeto de lei formulado pela Comissão Tripartite
vários e várias especialistas analisavam o contexto brasileiro
como sendo de franco retrocesso e previam que a passagem de Ratzinger
pelo país poderia aprofundar essa tendência regressiva.
Contudo, a cena política do momento não corresponde exatamente
a essa previsão sombria. Margareth Arilha avalia que o ambiente
democrático que hoje se respira no Brasil não permitirá
que posições religiosas regressivas se cristalizem na
sociedade após a visita do Papa. “Marcas sempre ficam,
mas elas não são indeléveis. Esse é primeiro
passo de um Pontificado duro e dogmático. Mas não será
fácil para a Igreja impor sua visão monolítica
em razão da existência de movimentos sociais favoráveis
á legalização e do debate democrático que
como estamos vendo hoje envolve e mobiliza muitos outros atores relevantes
como demonstra a posição lúcida do Ministro da
Saúde”.
* Washington Castilhos é jornalista e integrante
do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam).
Trabalhou na Assessoria de Imprensa da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) e especializou-se em escrever artigos jornalísticos
nas áreas das ciências biomédicas, sociais e políticas.
Este artigo foi publicado originalmente no Observatório
de Sexualidade e Política e faz parte da série de análises
produzidas pelo Observatório sobre as motivações
da visita do Papa Bento XVI ao Brasil.
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