3. A visão espírita
Não é consolador
e belo poder dizer: sou uma inteligência e uma vontade livre;
a mim mesmo me fiz, inconscientemente, através das idades;
edifiquei lentamente minha individualidade e liberdade, e agora
conheço a grandeza e a força que há em mim.
Leon Denis (Ref.
2, página 219)
Algumas idéias expostas acima como parte integrante do darwinismo
social aplicada à natureza humana parecem fortemente limitar
uma das mais misteriosas propriedades do ser humano: o livre-arbítrio.
Podemos descrever o livre-arbítrio como a capacidade do ser
decidir entre duas alternativas ou entre um conjunto de opções
por uma introspecção interna. O livre arbítrio
prende-se logicamente a razão de ser da personalidade humana,
diz-se que a criatura humana age de acordo com suas pendências
pessoais, e toma a decisão segundo seus interesses e inclinações
quando o livre-arbítrio tem papel preponderante. Para nós,
Espíritos encarnados, estamos absolutamente convencidos de
que nada externo a nós influencia tal escolha, não
estamos “pré-programados” ou somos controlados
“remotamente” para decidir entre isso e aquilo.
Do ponto de vista espírita,
assim, as semelhanças entre as extrapolações
genéticas e a astrologia também têm sua razão
de ser. Elas provêm de uma compreensão parcial
da natureza humana. Os Espíritos foram bastante
claros quanto à inexistência de scripts pré-programados
determinando a personalidade humana. Na Parte 2 do Capítulo
1 de “O Livro dos Espíritos” (3), Kardec dirige-se
aos Espíritos nos termos:
Por que é que alguns
Espíritos seguiram o caminho do bem e outros do mal?
“Não
têm eles o livre-arbítrio? Deus não os criou
maus; criou-os simples e ignorantes, isto é, tendo tanta
aptidão para o bem quanto para o mal. Os que são
maus, assim se tornam por vontade própria.”
A resposta dada contém em
si um princípio. Os Espíritos são dotados de
uma capacidade própria (como no caso da inteligência),
o de julgarem as coisas livremente. Compreende-se que se não
fosse assim, Deus certamente seria o responsável pela escolha
“errada” e portanto todo o mal que parece se originar
dessa escolha. Em outras palavras, sem o livre-arbítrio os
Espíritos não passariam de meros autômatas previamente
programados. A resposta, como de costume, parece não ter
sido suficiente a Kardec. Ele volta ao ponto da escolha entre as
duas opções possíveis com a questão
122.
Como podem os Espíritos,
em sua origem, quando ainda não têm consciência
de si mesmos, gozar da liberdade de escolha entre o bem e o mal?
Há neles algum princípio, qualquer tendência
que os encaminhe para uma senda de preferência a outra?
“O livre-arbítrio
se desenvolve à medida que o Espírito adquire a
consciência de si mesmo. Já não haveria liberdade,
desde que a escolha fosse determinada por uma causa independente
da vontade do Espírito. A causa não está
nele, está fora dele, nas influências a que cede
em virtude de sua livre vontade. É o que contém
a grande figura emblemática da queda do homem e do pecado
original; uns cederam à tentação, outros
resistiram.”
“As influências
a que cede em virtude de sua livre vontade” constituem
todas as influências externas ao Espírito que atuam
durante sua vida espiritual e que lhe são impostas a fim
de que consiga progredir. A decisão de qual caminho tomar
diante de tais influências pertence somente ao Espírito,
durante sua jornada evolutiva. Por tais fatores externos compreendemos
não somente os inumeráveis fatos que o Espírito
encontra na encarnação[6] (prazeres fictícios,
pessoas as quais ele tem afeto ou não, circunstâncias
felizes ou de desgraça), mas também todas as condições
especiais criadas pelo corpo físico no período da
reencarnação. Assim, o papel da hereditariedade não
é definir o comportamento humano (com exclusão do
livre-arbítrio que seria função dessa programação),
mas sim libertar ou limitar as capacidades já adquiridas
pelo Espírito por meio de arranjos especiais ou vínculos
físicos no corpo material, entendido como uma ferramenta
de trabalho desse Espírito.
Considerações mais
específicas ao assunto que aqui tratamos são tecidas
nas questões 845 e 846. Destacamos a primeira:
Não constituem obstáculos
ao exercício do livre-arbítrio as predisposições
instintivas que o homem já traz consigo ao nascer?
"As predisposições
instintivas são as do Espírito antes de reencarnar.
Conforme seja este mais ou menos adiantado, elas podem arrastá-lo
à prática de atos repreensíveis, no que será
secundado pelos Espíritos que simpatizam com essas disposições.
Não há, porém, arrastamento irresistível,
uma vez que se tenha a vontade de resistir. Lembrai-vos de que
querer é poder. (361)”
No final da resposta, há
uma referência direta à questão 361 onde os
Espíritos reafirmam que as qualidades morais que caracterizam
a índole ser humano têm origem em seu Espírito.
Poder-se-ia argumentar que as predisposições instintivas
fossem determinadas geneticamente ou, no caso da astrologia, pela
posição dos astros no firmamento. A Doutrina
Espírita abertamente faz a asserção de que
as predisposições instintivas são patrimônio
do Espírito, a bagagem ou herança espiritual
criada e carregada por ele mesmo através dos séculos.
Isso porque a lei moral que regula a distribuição
eqüitativa da justiça só é um conceito
válido se o Espírito for o único responsável
por seu sucesso ou fracasso. Tal é o conteúdo de perfectibilidade
da lei assentando sobre um princípio que se liga diretamente
à origem do Espírito e a sua mais íntima natureza.
Essa conclusão magistralmente integrada ao conteúdo
de princípios da Doutrina Espírita é a única
capaz de explicar o ser humano ou de ao menos trazer a sensação
consoladora de que não somos joguetes da sorte. Para os abusos
de interpretação oriundos da genética ou da
astrologia, o ser humano é uma criatura incompleta, inconsistente
em si mesmo porque para vir a ser necessita do jogo aleatório
seja das disposições genéticas ou da posição
dos astros.
Entretanto, já comentamos
sobre a influência da matéria. Esta
é naturalmente função do grau de adiantamento
do Espírito, tanto intelectual como moral. Essa
influência foi inúmeras vezes reafirmada pelos Espíritos,
podendo ser encontrada em diversas respostas do “O Livro dos
Espíritos”. Nos estágios iniciais de evolução
é natural que os Espíritos estejam fortemente sujeitos
aos ditames da matéria. A matéria não determina
a decisão do Espírito, mas atua vigorosamente como
vínculos que o incitam a uma ou outra direção.
À medida que o Espírito evolui, os laços materiais
tornam-se mais fracos, liberando-o cada vez mais para decisões
independentes ou para a manifestação de capacidades
em desacordo com os arranjos materiais ou leis naturais. Alguns
exemplos práticos dessa liberdade relativa da matéria
podem ser encontradas mesmo em nossa sociedade:
I – A liberdade de escolha
de seres humanos em ter ou não filhos. Como se sabe, a reprodução
é uma lei natural através da qual os genes são
transmitidos a futuras gerações de uma certa espécie
por meio de um processo que é o próprio núcleo
da evolução natural. Se não há reprodução
dentro da espécie, esta inexoravelmente morre, tanto fisicamente
como para a Natureza como um todo, já que seu conteúdo
hereditário deixa de existir. Os seres humanos, que são
Espíritos encarnados, podem surpreendentemente “refutar”
essa lei biológica e decidir por não se reproduzir.
Se admitirmos que os animais e os humanos guardam origem e natureza
comuns (são seres encarnados em diferentes graus da escala
evolutiva), tal escolha bizarra só pode ser compreendida
dentro da relativa liberdade espiritual adquirida pelo Espírito
com essa evolução. Naturalmente devemos diferenciar
aqui a decisão de não se reproduzir tomada como uma
opção de vida onde o sexo ainda é ingrediente
corrente daquela inerente ao próprio Espírito na abstinência
sexual a que se dedica, as vezes durante toda a vida, por ter atingido
uma relativa independência das necessidades sexuais. No caso
desse seres, cuja quantidade em nossa sociedade é muito maior
do que se pensa, existe uma clara libertação de uma
lei que continua a valer para o imenso contingente de encarnados.
II – Os inumeráveis
e não ortodoxos comportamentos sexuais humanos. Entendemos
que homossexualismo, bisexualismo e transsexualismo são fenômenos
que surgem naturalmente, no sentido exposto acima, da liberdade
adquirida pelo Espírito dos laços e leis materiais
ou da força de seus instintos internos – originados
em sua própria natureza espiritual – que refutam a
escolha biológica herdada. Muitas teorias têm sido
desenvolvidas para explicar tais comportamentos, partindo-se de
diferentes hipóteses. Algumas delas tendem a enfatizar a
“bagagem hereditária”, enquanto que outras o
ambiente. Nenhuma explicação adequada e convergente
tem sido encontrada. O ponto crucial parece ser a falta de uma imagem
coerente do ser humano, que pode ser plenamente encontrada através
da aplicação dos princípios espíritas.
De fato, a reencarnação é o ponto de partida
para se compreender muitos desses fenômenos, sendo o transsexualismo
apenas um dos exemplos notáveis.
As aparentes similaridades entre
a astrologia e a genética (tanto quanto podemos inferir do
conhecimento comum dessas disciplinas) estão conclusivamente
estabelecidas sobre uma visão parcial da natureza humana.
Embora sejam consideradas muito diferentemente pela sociedade moderna,
tanto uma como a outra limitam, de certa forma, o livre-arbítrio
humano, que sofre a interferência de fatores externos no momento
do nascimento. Os Espíritos, entretanto, deixaram claro que
não existe uma programação de comportamento,
antes, o Espírito é livre para tomar as decisões
que julgar conveniente. Para isso, o Espírito utiliza os
recursos materiais colocados a sua disposição, sendo
ele o responsável pela escolha correta ou errada, se caiu
sob esse ou aquele arrastamento. À medida que o Espírito
progride, torna-se menos vulnerável à influência
material, porque já demonstrou em si mesmo que está
livre.
Há ainda a questão
da escolha dos fatores materiais, que são mais ou menos estabelecidos
no momento da reencarnação. Para a Doutrina
Espírita, mesmo nesse instante, não existe propriamente
uma “imposição externa”, mormente se o
Espírito já desfruta de um certo nível evolutivo.
No início de sua jornada, é razoável admitir
que o Plano Maior se responsabilize pelo estabelecimento dos recursos
materiais apropriados ao ser ainda em estágio embrionário,
nascido “simples e ignorante”. Assim sendo, podemos
dizer que a origem de todas as disposições externas
durante a existência material do Espírito está
fundamentalmente estabelecida nele mesmo.
Acrescentamos além
disso que, mesmo se houver espaço para o livre-arbítrio
dentro de certas doutrinas não espíritas (como é
o caso da astrologia e do darwinismo social ou sociobiologia) este
sofre injustamente com a ação de fatores externos
que não têm nenhuma relação, ainda que
indiretamente, com o próprio Espírito. De certa forma,
isso responde a possíveis questionamentos da astrologia e
da genética aplicada ao comportamento quanto a minhas colocações
anteriores sobre o livre-arbítrio nos seres e sua não
determinação absoluta (determinismo comportamental
fraco) pelos mecanismos externos propostos por essas disciplinas.
Em resumo, para o Espiritismo, o Espírito é
o artífice do seu destino – através
da simbiose entre ação e reação ligadas
aos seus atos – enquanto que para outras disciplinas o destino
é alterado por mecanismos alheios à vontade do ser.
Para completar, lembramos que no caso das religiões cristãs
mais antigas – seja o Catolicismo ou Protestantismo –
a alma é criada por Deus no instante do nascimento. Como
ela não existe anteriormente a esse evento, todas as suas
predisposições naturais só podem ter origem
naquele que as criou. Assim, Deus é o grande responsável
por seu destino. Nesse caso extremado de determinismo comportamental,
que valor pode ter o livre-arbítrio?