Todos somos livres na
escolha das nossas crenças; podemos crer em alguma
coisa ou em nada crer, mas aqueles que procuram fazer prevalecer
no espírito das massas, da juventude principalmente,
a negação do futuro, apoiando-se na autoridade
do seu saber e no ascendente da sua posição,
semeiam na sociedade germens de perturbação
e dissolução, incorrendo em grande responsabilidade.
A. Kardec em 'O Céu e o Inferno'
Nossa época apresenta-se
como o apogeu da cultura científica e da pobreza filosófica,
fruto de doutrinas negativas e niilistas adotadas de forma conveniente
após a separação entre o Estado e a Religião
estabelecida, que se provou ser remédio mais fulminante do
que a própria doença. Por isso, alguns indivíduos,
portadores de deficiências ainda mais profundas na compreensão
que deve existir entre seres que se reconhecem iguais, tornam-se
casos alarmantes a demonstrar conduta de visível decadência
em todos os sentidos.
Por que isso acontece? Um pouco de reflexão,
desde que pautada na visão espírita mais dilatada
da razão e da existência dos seres, nos mostra facilmente
o motivo.
Em primeiro lugar, é importante enunciar
verdades à guiza de princípios: nossa sociedade vive
fase de pesadas angústias sociais, fruto do desabamento de
suas estruturas éticas e morais. Isso acontece porque, em
uma sociedade onde não existe esperança no porvir,
na vida futura, não poderá haver nenhuma tipo esperança.
De uma lado temos a Religião estabelecida que se tornou motivo
de riso e deboche, uma vez que as práticas não correspondem
aos princípios pregados. De outro, a intelectualidade que
se incumbe hoje de decisões dos Governos e organizações
civis, perdida em interpretações apressadas da Ciência,
se satisfaz com crenças céticas e pessimistas diante
das quais a ética torna-se apenas uma questão de opinião
pessoal.
Diante desse quadro, para determinadas mentes enfermiças
que, ao nascerem, se reconhecem diante de um mundo cuja razão
é desconhecida, o convívio harmonioso se torna uma
necessidade. Se o mundo não tem sentido, então ao
menos viveremos com algum sentido sendo aceitos e compreendidos
por nossos semelhantes.
Mas o que fazem nossos semelhantes? Vivem conforme a imensa maioria,
perdidos nesta mesma sociedade cujas crenças exclusivistas
determinam gozar ao máximo a existência presente que,
afinal, tem como fim último o vazio eterno.
Nada nos espanta ver então o surgimento de grupos que sistematicamente
desprezam, caluniam e atacam outros considerados diferentes ou inferiores.
E nada, governo, sociedade ou pessoa alguma poderá detê-los,
afinal, como não existe vida futura, inexiste justiça.
É em vão que se invoca a justiça dos Governos,
muito tempo depois que a oportunidade de uma educação
baseada na verdadeira esperança foi perdida.
Em vão tentarão reformular leis, convencer ou mudar
uma sociedade que não vê sentido em nada além.
Qual será a diferença entre matar uma mosca e matar
seu semelhante? Tal é a questão que se coloca para
quem aprendeu a relativizar seus sentimentos em um mundo sem direção.
Mais de um século nos separam hoje desde que Allan Kardec
escreveu as palavras abaixo (Em 'O Céu e o Inferno') que
se aplicam perfeitamente aos dias que vivemos:
Suponhamos
que, por uma circunstância qualquer, todo um povo adquire
a certeza de que em oito dias, num mês, ou num ano será
aniquilado; que nem um só indivíduo lhe sobreviverá,
como de sua existência não sobreviverá nem
um só traço: Que fará esse povo condenado,
aguardando o extermínio?
Trabalhará pela causa do seu progresso, da sua instrução?
Entregar-se-á ao trabalho para viver? Respeitará
os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-se-á
a qualquer lei ou autoridade por mais legitima que seja, mesmo
a paterna? Haverá para ele, nessa emergência, qualquer
dever?
Certo que não. Pois bem! O que se não dá
coletivamente, a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamente,
individualmente.
E se as conseqüências não são desastrosas
tanto quanto poderiam ser, é, em primeiro lugar, porque
na maioria dos incrédulos há mais jactância
que verdadeira incredulidade, mais dúvida que convicção
– possuindo eles mais medo do nada do que pretendem aparentar
– o qualificativo de espíritos fortes lisonjeia-lhes
a vaidade e o amor-próprio; em segundo lugar, porque os
incrédulos absolutos se contam por ínfima minoria,
e sentem a seu pesar os ascendentes da opinião contrária,
mantidos por uma força material.
Torne-se, não obstante, absoluta a incredulidade da maioria,
e a sociedade entrará em dissolução. Eis
ao que tende a propagação da doutrina niilista.
(Grifos nossos)
Kardec explica aqui porque nem todos
se dissolvem na falta de ética resultante da crença
niilista: não é porque esta explicação
seja inapropriada, mas porque a dúvida e a falta de convicção
norteia a imensa maioria que, por medo, faz de forma automática
o que se aprendeu por imitação a fazer. Seguem hebetados
a costumes e modismos, sem nenhum compromisso com o futuro. Kardec
previu, entretanto, que haveria um aumento do relaxamento moral,
na medida que o niilismo ganhasse força na sociedade. É
por isso que hoje vemos, todos os dias, notícias de crimes
escabrosos que ocorrem aqui e ali, quando então o medo e
a dúvida são substituídos pela violência
que sacrifica sem piedade suas vítimas. Também Leon
Denis em 'O problema do Ser, do Destino e da Dor' adverte:
Em toda parte a crise existe,
inquietante. Sob a superfície brilhante de uma civilização
apurada esconde-se um mal-estar profundo. A irritação
cresce nas classes sociais. O conflito dos interesses e a luta
pela vida tornam-se, dia a dia, mais ásperos. O sentimento
do dever se tem enfraquecido na consciência popular, a tal
ponto que muitos homens já não sabem onde está
o dever. A lei do número, isto é, da força
cega, domina mais do que nunca. Pérfidos retóricos
dedicam-se a desencadear as paixões, os maus instintos
da multidão, a propagar teorias nocivas, às vezes
criminosas. Depois, quando a maré sobe e sopra o vento
de tempestade, eles afastam de si toda a responsabilidade.
(...) A origem de todos os nossos males está em nossa falta
de saber e em nossa inferioridade moral. Toda a sociedade permanecerá
débil, impotente e dividida durante todo o tempo em que
a desconfiança, a dúvida, o egoísmo, a inveja
e o ódio a dominarem. Não se transforma uma sociedade
por meio de leis. As leis e as instituições nada
são sem os costumes, sem as crenças elevadas. Quaisquer
que sejam a forma política e a legislação
de um povo, se ele possui bons costumes e fortes convicções,
será sempre mais feliz e poderoso do que outro povo de
moralidade inferior.
Em vão alguns pigmeus morais afirmarão
que o niilismo de nossa sociedade nada tem a ver com os problemas
de polícia. Outros tratarão de culpar o Estado pela
falta de segurança e pelo mal estar geral devido a crise
econômica. Ainda outros, religiosos dogmáticos apresentarão
as portas do inferno eterno aqueles que não se enquadram
em suas doutrinas repletas de idéias preconcebidas e interpretações
errôneas.
O problema que temos que enfrentar é muito mais profundo
e exige tratamento das causas e não ação de
paliativos. A certeza na Imortalidade e a noção de
uma Justiça Natural preexistente a tudo deverá ser
a base para uma nova educação, baseada na aceitação,
compreensão e múta estima - calcada em exemplos e
não em mera retórica - que deverá ser ministrada
a nossos filhos e descendentes a fim de que possamos viver realmente
em paz.