No início do milênio, estava às
voltas com o doutorado em São Paulo. Como a família
ficou em Belo Horizonte, optei por ir e vir semanalmente, em princípio
de ônibus, que esperava pacientemente na estação
rodoviária Bresser, hoje extinta. Às vezes ficava
horas assentado nas desconfortáveis cadeiras do terminal,
e ainda cheio de energia, resolvi aproveitar o tempo e fazer avançar
o projeto de tradução de O aspecto científico
do sobrenatural (Editora Lachâtre).
Após alguns anos havia conseguido
um exemplar em língua inglesa, importado dos Estados Unidos,
de um livro que apresentava os principais trabalhos de Alfred Russel
Wallace sobre o espiritualismo e a pesquisa dos fenômenos
espirituais (Miracles and the modern spiritualism).
O texto de Wallace, difícil, também pela distância
do tempo, exigia cuidados, pois vez por outra lançava mão
de conceitos próprios da filosofia e das ciências naturais.
No terminal rodoviário eu podia passar para o português
apenas as frases e expressões mais fáceis, deixando
os trechos mal compreendidos do texto para uma pesquisa posterior.
Para não cansar o leitor,
posso dizer que o trabalho demorou mais de um ano. Envolveu pesquisa,
internet e, no final, uma revisão criteriosa que exigiu mudanças
e discussões amigáveis entre autor e editor, até
que o livro ficasse pronto. Pensei que o movimento espírita
não se interessaria pelo trabalho, mas estava enganado. Para
um livro de pesquisa, a demanda tornou-se contínua, e embora
não tenha se tornado nenhum best-seller, esgotou-se.
Já estava empenhado na publicação
de outra tradução do mesmo autor, ainda mais técnica,
que saiu com o título Diálogo com os céticos,
quando recebi a notícia desalentadora. Talvez o Aspecto científico
do sobrenatural não fosse reimpresso porque havia sido pirateado
e disponibilizado na internet. Imediatamente fui pesquisar a procedência
da afirmação, e qual não foi a minha surpresa
quando encontrei o livro em sites espíritas. Ao examinar
o texto, descobri ainda que havia pelo menos duas versões.
Uma delas devia ter sido digitada e inseriu uma quantidade enorme
de erros no livro. Eles ocultavam todas as informações
editoriais, deixando apenas o texto do autor britânico. Fiquei
abismado. Por que alguém cometeria tão claro desrespeito
à lei de direitos autorais no nosso país? A tradução
é uma produção intelectual tão protegida
quanto um romance autoral, uma música ou um software.
Passei a entrar em contato com os
supostos pirateadores, uma vez que os considero potenciais homens
de bem. Eles estariam abertos a um diálogo. Alguns retiraram
o livro de suas listas, mas o estrago já estava feito, com
os diversos textos espalhados pela internet, com traduções
desfiguradas e equivocadas.
Lembrei-me dos evangelhos cristãos.
Nós espíritas conhecemos o trabalho de São
Jerônimo, que foi convocado pelo poder eclesiástico
a selecionar, dentro de uma enormidade de textos e cartas atribuídas
aos apóstolos e primeiros cristãos, aqueles que comporiam
o Novo Testamento. Ele lamentou-se, dizendo
que ao final de seu trabalho, ninguém reconheceria sua seleção,
que se tornou a base da vulgata e proscreveu inúmeros documentos
à condição de apócrifos. Acho que em
breve teremos este tipo de discussão no movimento espírita,
com o avanço dos tablets e outros meios digitais. Qual texto
será confiável? Esta é uma das consequências
que não apenas antevejo, mas que já percebo estar
acontecendo pontualmente.
Outra questão que estamos
vivendo nesta transição do mercado editorial espírita
é um efeito indesejado dos clubes do livro espíritas.
Eles foram criados para disseminar o livro espírita e viabilizar
a edição de obras de qualidade de autores novos, de
livros clássicos, de livros de estudo e outras iniciativas
nobres, ou seja, na contramão da economia de mercado. Todavia,
parece que a criatura se voltou contra o criador. Os leitores, em
vez de se interessarem por este traçado, aos poucos foram
demandando a transformação dos clubes em uma espécie
de indústria de entretenimento. Querem romances. E o apelo
é tão grande, que as editoras passam a ter que editar
romances e mais romances, para tornarem-se viáveis e talvez
editar um livro de estudos ou pesquisas. Nada tenho contra a literatura
e o romance é um gênero importante, mas, uma vez banalizado,
lembra os livretos vendidos em bancas de jornal para passar o tempo.
Da edição de livros
de má qualidade aos centros espíritas o efeito se
faz perceber. As livrarias cedem às políticas de lançamento
das distribuidoras e resolvem adquirir livros que vendem, em vez
de priorizarem a divulgação do espiritismo como sua
meta primordial. Em pouco tempo, o grande público começa
a consumir livros publicados para “fazer caixa” e a
trazer para os centros espíritas confusões elementares,
ocultas sobre autorias que se tornaram notáveis por fazerem
best-sellers. Autores muito respeitados, que alimentaram as gerações
de espíritas que nos antecederam, começam a ser esquecidos,
porque não têm como concorrer com os lançamentos
divulgados a torto e a direito para sustentar as editoras.
A situação torna-se
ainda mais crítica, quando o funcionamento das sociedades
espíritas depende da renda da livraria, em vez das contribuições
dos sócios. Por uma questão de autonomia, o dinheiro
dos livros deveria ficar entre os livros. As livrarias deveriam
manter um acervo mínimo para que os leitores pudessem ter
acesso ao livro, folheá-lo. Isso é tão importante
quanto assistir a uma palestra. O lucro poderia ser revertido às
bibliotecas para atender a um número ainda maior de interessados,
e se houver uma política de aquisição de acervo,
auxiliar a viabilizar aqueles livros de estudos, que são
de baixa vendagem. É assim que funciona nas universidades,
visto que os livros técnicos são de baixa procura
e muitas vezes apoiados por fundos do estado, dada a sua importância.
Como reverter este processo?
Alguns acreditam que não há como. Outros, mais radicais,
querem acabar com o mercado editorial e colocar tudo de graça
da internet. Eu espero que os diversos atores sociais, como lideranças,
editores, livreiros e outros se mobilizem para que tenhamos livros
de qualidade nos centros espíritas, pelo menos, e para fazermos
escolhas que possibilitem o uso das novas mídias que estão
surgindo, como o livro digital.