Publiquei no livro “O espiritismo,
as ciências e a filosofia” um artigo no qual faço
analogias entre os métodos da fenomenologia de Edmund Husserl
e, bem pouco, da hermenêutica de Schleiermacher, aos trabalhos
de Kardec [1]. Como Husserl é
posterior a Kardec, cabe a pergunta: terei incorrido em anacronismo?
O meu companheiro Houaiss define
anacronismo, no significado mais próximo que estamos empregando,
como “erro de cronologia que geralmente consiste em atribuir
a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que
são de outra época, ou em representar, nas obras
de arte, costumes e objetos de uma época a que não
pertencem”.
Edmund Husserl começou
a elaborar sua fenomenologia no início do século
20, décadas depois da desencarnação de Allan
Kardec. Seguramente, Kardec não conhecia, nem leu Husserl,
sendo impossível que os textos do autor alemão tivessem
sido manuseados pelo fundador do espiritismo. Qual é o
nexo entre estes dois autores que entrevimos em nosso trabalho?
Independente da questão
da existência ou não dos espíritos, Allan
Kardec decidiu estudar não apenas os fatos supostamente
provocados por eles sobre a matéria, mas também
o seu discurso através dos médiuns. As influências
filosóficas de Kardec em sua época, que pretendeu
dar um tratamento científico aos estudos que fez e aos
dados que obteve, faziam uma clivagem entre ciência e filosofia.
O positivismo de Comte, por exemplo, só considerava científico
o que se referisse ao estudo da matéria e que compusesse
uma explicação associativa entre acontecimentos
materiais, cuja plena generalização era chamada
de “lei”. A filosofia tornou-se serva desta forma
de fazer ciência, muito bem-sucedida nos domínios
das ciências naturais (física, química e biologia,
com uma base matemática para a constatação
das associações).
Allan Kardec, no entanto, não
tinha acesso direto ao “mundo espiritual”, nem à
“realidade espiritual” que desejava estudar. Assim
como um psicólogo, ele precisava formular suas teorias
sobre os espíritos, com base quase exclusiva naquilo que
lhe diziam os médiuns. Pode-se dizer, portanto, que ele
se propôs a estudar o discurso produzido pelos médiuns
antes da formulação da psicologia como ciência
e seus métodos, o que vai acontecer a partir da década
seguinte à desencarnação do fundador do espiritismo.
Para fazer seu trabalho, ele teve
que antecipar métodos que seriam elaborados futuramente
pelas chamadas ciências humanas, e ainda sem autores que
tratassem desse tipo de metodologia. Um exemplo que temos foi
o chamado “controle universal do ensino dos espíritos”,
que ele descreve na introdução de “O evangelho
segundo o espiritismo”.
Na falta de instrumentos que permitissem
a observação ou experimentação direta
do mundo espiritual, Kardec tem por base de informação
aquilo que os espíritos dizem através dos médiuns.
Todavia, ele conhece as limitações da mediunidade,
que estudou. Nem tudo o que é dito pelos médiuns
é de origem espiritual, eles podem misturar suas próprias
ideias aos conteúdos espirituais. Nem tudo o que é
dito pelos espíritos pode ser considerado verdadeiro, porque
alguns ignoram sua própria condição e estado,
outros creem saber mais do que realmente sabem, e dão explicações
fantasiosas para explicar suas experiências, outros ainda
apresentam conhecimentos compreensíveis e racionais, tendo
noção dos limites de sua capacidade de explicação.
Allan Kardec pretende, então identificar esses últimos,
distingui-los dos demais, e situar a doutrina espírita
circunscrita ao que eles dizem e que pode ser verificado com o
discurso obtido através de outros médiuns que desconheciam
o que foi dito sobre o tema em estudo.
No parágrafo acima temos
dois princípios de pesquisa similares aos que propôs
Husserl futuramente. O primeiro é que ele sabe que não
vai estudar diretamente os espíritos, nem o mundo espiritual.
Ele vai estudar indiretamente, a partir do conteúdo do
que dizem os médiuns. Em fenomenologia, se diz que se estuda
a “consciência da realidade”, e não diretamente
um objeto natural. Kardec estudou a “consciência da
consciência da realidade”, ou seja, o que o médium
interpreta sobre o discurso de um espírito sobre o mundo
espiritual.
O segundo princípio similar
é o da busca de explicações espirituais semelhantes,
produzidas por espíritos capazes, através de diferentes
médiuns, que de preferência não conhecem uns
aos outros. Husserl denomina isso de “redução
eidética”, a busca das essências, aquele conteúdo
apreendido pela intuição do pesquisador após
investigação fenomenológica com diversos
sujeitos, cujos elementos centrais do discurso são similares.
É com esse material que Kardec formula a doutrina espírita,
ou, em linguagem científica, a teoria espírita.
Como Husserl, Kardec aceita que
essa primeira formulação não é a definitiva.
Novas incursões em relatos mediúnicos podem ser
feitas e novos pontos podem ser encontrados, o que evita a “cristalização”
do pensamento Kardequiano mas exige “integração”
entre o já conhecido e o novo.
Essas semelhanças, entre
outras, nos levaram a crer que, estudando “pessoas desencarnadas”,
Kardec teve que sair das estritas proposições das
ciências naturais, para adentrar um campo de pesquisa novo,
fundamentado nos discursos mediúnicos e não exclusivamente
na observação de fatos. Por essa razão, pela
inexistência de uma epistemologia de ciências humanas
na época de Kardec, não encontramos em seu texto
senão uma tentativa de adaptação daquilo
que se conhecia das ciências naturais para a explicação
de sua metodologia pessoal de trabalho. Não há anacronismo
nessa afirmação. O que dizemos, é que coisas
como o “controle universal” não podem ser explicados
com uma epistemologia de ciências naturais, que se constituíram
em ruptura ao racionalismo (caro a Kardec), ao idealismo e a outras
formas de busca da verdade no contexto filosófico. O que
existe, portanto, é uma prática de pesquisa concreta,
descrita ao longo do trabalho de Allan Kardec, sem termos epistemológicos
vigentes em sua época, capazes de a explicarem de forma
semelhante ao que fazia Lavoisier, Le Verrier e outros cientistas
da natureza, de sua época.
O filósofo e psicólogo
Wilhelm Wundt (1832-1920) ficaria conhecido por demarcar, em 1873,
a criação de uma nova ciência em seu livro
“Princípios de Psicologia Fisiológica, no
qual situa a psicologia no domínio das ciências naturais.
Ele tinha uma dupla formação: médico e filósofo
(as duas origens da Psicologia nascente do século 19).
Seu discípulo, Titchener (1867-1927), iria propor como
objeto de estudo da psicologia a investigação dos
fenômenos “com base na experiência e observação
pessoal”, denominando sua escola como estruturalismo. Ambos
fazem ciência com base na consciência, assim como
Allan Kardec, embora suas contribuições mais conhecidas
envolvam bastante os pontos de contato entre o físico-biológico
e o mental. A psicologia como área de conhecimento autônomo,
portanto, ficou registrada na história após Allan
Kardec.
Kardec não anteviu a fenomenologia,
e nem poderia fazê-lo, mas trabalhou com o objeto das ciências
humanas em um tempo que elas ainda não estavam formalizadas,
e desenvolveu métodos próprios que depois o filósofo
alemão explicaria com uma proposição ainda
mais ampla de pesquisa.