Há uma diferença entre crenças
compartilhadas e doutrinas filosóficas. As primeiras se baseiam
em um corpo de ideias, racionais ou não, com ou sem base
empírica, propostas ou mantidas por pessoas consideradas
autoridades por um grupo. Um exemplo famoso de crença compartilhada
é o “senso comum” ou conhecimento popular, que
é um conjunto de crenças aprendidas em sociedade que
são passadas entre gerações e aceitas pelos
membros dos grupos sociais.
Recordo-me das famílias que
atendíamos no Lar Espírita Esperança, e com
as quais conversávamos sobre noções de puericultura.
Muitas mães, oriundas “da roça”, aprenderam
em suas comunidades que se deve tratar do umbigo do recém-nascido
com teias de aranha, fumo de rolo ou outras substâncias, que
a medicina mostra trazerem riscos de saúde para o neonato,
infecções ou outros problemas. Indicávamos
o uso de álcool, com base na autoridade médica, mas
muitas mães recusavam, dizendo que demorava muito para cair
o umbigo.
Nas nossas cabeças, tratava-se
de uma disputa de autoridades. Quem deveria ser considerado? Muitas
mães achavam que suas mães, avós, vizinhas
e outras pessoas “experientes” sabiam o que fazer. Nós
acreditávamos na medicina, porque os médicos baseiam
suas práticas em conhecimentos verificados, registrados e
comparados, com uma casuística muito maior que a do conhecimento
popular. Entre nós e elas havia apenas uma disputa de autoridades,
mas espera-se do conhecimento médico uma decisão se
possível consensual, com base em estudos, observações
e comparações estatísticas.
Quando pensamos no Espiritismo,
vemos um corpo imenso de proposições, a partir dos
estudos de Allan Kardec. Que proposições devemos aceitar
como espíritas? O próprio Kardec nos ensinou que muitas
delas partiram de observações, outras de raciocínios
filosóficos, outras de consenso entre espíritos considerados
superiores, que se comunicavam por médiuns diferentes. Mais
à frente, quando publicava a Revista Espírita, Kardec
dá mostras de levar em consideração a análise
e a crítica oriunda dos diversos grupos e leitores do periódico.
Como avança o pensamento
espírita? Deveria ser da mesma forma. Novas proposições
deveriam ser analisadas racionalmente, as observações
que fundamentam essas proposições deveriam ser explicitadas
e compartilhadas. Com certeza, a reputação dos médiuns
é importante, sua participação voluntária
(sem qualquer contrapartida econômica) no trabalho mediúnico
também, mas sua reputação em si não
deveria assegurar a veracidade ou não da sua produção
mediúnica.
Qualquer médium é
capaz de ser enganado por espíritos, de substituir as ideias
de espíritos comunicantes por suas próprias ideias
(sem o perceber), de não entender direito o que lhes é
intuído e registrar algo originalmente certo de forma equivocada.
Os médiuns são pessoas, então mesmo que tenham
seu compromisso com a reforma íntima, têm seus sentimentos,
suas vaidades, seu orgulho pessoal, e suas emoções
podem muito bem interferir em questões que deveriam ser solucionadas
de forma racional, como todos nós o fazemos em nossas vidas.
Quanto maior o respeito que tenhamos
a um médium, cabe a um estudioso espírita perguntar-se
sempre qual é o fundamento do que se afirma em nome do espiritismo.
A assertiva respeita a razão? A proposição
entra em contradição com o corpo doutrinário?
Nesse caso, o que justificaria uma mudança de posição
até então adotada? Que argumentos foram construídos?
A interpretação do que diz o Espírito está
correta? Onde mais encontramos ideias de mesmo teor? Há alguma
base na observação ou experimentação
científicos?
Alguns espíritas e algumas
casas espíritas, contudo, não avançam em nível
de análise. Escolhem autores e expositores e aceitam em bloco
tudo o que afirmam em nome do espiritismo. Têm uma noção
superficial do sentido dos conceitos, não fazem análise
racional do que dizem, não consideram importante verificar
a origem das teorias que esposam. Afirmam que o espiritismo é
também uma filosofia, mas desconhecem o que é filosofia.
Quando são questionados, geralmente respondem algo que se
resume na expressão latina: magister dixit, ou seja, “o
professor disse”. Outra expressão latina também
ilustra bem essa forma de trabalhar: “Roma locuta, causa finita”
ou seja, “Se Roma falou, a causa está encerrada.”
É uma forma de pensar composta de dogmas, ideias indiscutíveis,
mesmo que pensem o contrário.
O professor, ou Roma, pode ser um
expositor famoso, um médium prestigiado, um dirigente de
casa espírita, ou um “guia espiritual”. Todos
os cuidados com o conhecimento propostos pelo velho Kardec são
esquecidos, e o que passa a valer é uma espécie de
referendo grupal das opiniões. O membro da casa espírita
passa a se preocupar mais com a conformidade ou não de uma
ideia com as dos demais membros que com sua realidade ou coerência.
É algo como: creio porque todos creem nisso também.
A crença coletiva passa a ser mais importante que a verdade,
a razão e até mesmo o bom senso.
Pensemos nisso. Estudar o espiritismo
é algo que exige da pessoa interessada mais que a compreensão
e a fé; exige compromisso com a razão e com a busca
da verdade.