Vivemos hoje uma época de muita tensão
entre cristãos e muçulmanos, fruto de ações
militares em países muçulmanos, ações
contra a vida de civis nos Estados Unidos, na França (Charlie
Hebdo), das posições iconoclastas dos militantes do
ISIS e do velho preconceito dos países ocidentais, que insiste
em generalizar atos cometidos por indivíduos e organizações
para todos os adeptos de uma religião no mundo.
Allan Kardec sempre teve uma conduta
de tolerância entre as religiões, não uma tolerância
ingênua, que pressupõe bondade em tudo, mas uma aceitação
de diferenças e uma possibilidade de convivência apesar
delas.
Na Revista
Espírita de 1866, Kardec escreveu dois artigos com
o título "Maomé e o Islamismo",
nos quais denuncia o conhecimento apenas legendário dos Europeus
sobre o Islamismo, a ação do espírito de partido,
que ressalta "os pontos mais acessíveis à crítica,
muitas vezes, e de propósito" deixa na sombra as partes
favoráveis.
"Disto resultou que sobre
o fundador do islamismo se fizeram ideias muitas vezes falsas
ou ridículas, baseadas em preconceitos, que não
encontravam nenhum corretivo na discussão." (página
225- Edicel)
Ele consultou um livro publicado
por Saint Hilaire (Mahomet et le Coran), pela livraria Didier, que
sintetiza as principais considerações dos orientalistas
de sua época, formando uma opinião diversa da que
era veiculada em sua época.
Ele trata das origens do islamismo
entre os povos árabes, da luta de Maomé contra os
ídolos que dividiam os povos árabes e faz uma biografia
de Maomé voltada ao seu contexto, às dificuldades
que enfrentou e destacando um homem pacífico por décadas,
que só se lançou à guerra quando foi sitiado
em Medina.
"Maomé foi, pois,
guerreiro, pela força de circunstâncias, muito mais
que por seu caráter, e terá sempre o mérito
de não ter sido o provocador." (páginas
321 e 322 - Edicel)
Kardec, portanto, defende a desconstrução
de um Maomé ambicioso, sanguinário e cruel. Ele considera
o homem em seu tempo, em contato com povos belicosos.
Outro ponto destacado nos artigos
dizem respeito às percepções que Maomé
afirma ter com o anjo Gabriel, origem das Suratas.
Allan Kardec não concorda
com o casamento poligâmico de Maomé após a morte
da sua esposa Khadidja.
"Permitindo quatro mulheres
legítimas, Maomé não pensou que, para que
sua lei se tornasse a da universalidade dos homens, era preciso
que o sexo feminino fosse ao menos quatro vezes mais numeroso
que o masculino". (página 323
- Edicel)
"Mau grado suas imperfeições,
o Islamismo não deixou de ser um grande benefício
para a época em que apareceu e para o país onde
surgiu, porque fundou o culto da unidade de Deus sobre as ruínas
da idolatria." (página 323 -
Edicel)
Essa religião era a mais
simples de todas:
"Crença num Deus único,
onipotente, eterno, infinito, presente em toda a parte, clemente,
misericordioso, criador dos céus, dos anjos e da Terra.
Pai do homem, sobre o qual vela e o cumula de bens; remunerador
e vingador numa outra vida, onde nos espera para nos recompensar
ou castigar, conforme os nossos méritos. Vendo nossas ações
mais secretas e presidindo ao destino inteiro de suas criaturas
que não abandona um só instante, nem neste mundo,
nem no outro; submissão a mais humilde e confiança
absoluta em sua vontade santa": eis os dogmas.
Há o destaque no antigo e
do novo testamento na religião muçulmana, que reconhece
Jesus como profeta: enviado de Deus para ensinar a verdade aos homens,
assim como Moisés. O codificador destaca que Maomé
não tinha sentimentos hostis pelos cristãos e no próprio
Alcorão recomenda habilidade para com eles, "mas o fanatismo
os englobou na proscrição geral dos idólatras
e dos infiéis" (página
331 - Edicel)
Vejam três citações:
"Os Cristãos serão
julgados segundo o Evangelho; os que os julgarem de outro modo
serão prevaricadores" (Surata
V, v. 51)
"Não discutais com
os Judeus e os Cristãos senão em termos honestos
e moderados. Entre eles confundi os ímpios: Dizei: Nós
cremos no livro que nos foi revelado e em nossas escrituras. Nosso
Deus e o vosso são apenas um. Somos muçulmanos (Surata
XXIX, v. 45)
"Não façais
violência aos homens por causa de sua fé. A via da
salvação é bem distinta do caminho do erro.
(Surata I, v. 257)
Kardec reproduz diversas passagens
das Suratas sobre o paraíso de Maomé e critica a pilhéria
que àquela época faziam dele.
"Tal é o famoso paraíso
de Maomé, do qual tanto pilheriam e que, certamente, não
procuraremos justificar. Apenas diremos que estava em harmonia
com os costumes desses povos e que devia agradá-los muito
mais que a perspectiva de um estado puramente espiritual, por
mais explêndido que fosse..." (páginas
336 e 337 - Edicel)
O segundo artigo termina com uma
promessa que até o momento não encontrei (se alguém
encontrar, por gentileza, me avise)
"Em próximo artigo
examinaremos como o Islamismo poderá ligar-se à
grande família da humanidade civilizada."
Em outras palavras, ainda que discordasse
de alguns pontos da religião islâmica, Kardec publicou
na defesa do respeito e do entendimento entre cristãos e
muçulmanos. Desconstruiu algumas lendas que corriam em seu
país sobre os muçulmanos e fez uma análise
histórica, ainda que marcada em alguns pontos pelo entendimento
comum de sua época da superioridade da cultura ocidental.
Parece que estes textos têm sua significância nos dias
de hoje, em que um grande debate se faz em torno das relações
entre os países ocidentais e os países árabes
e muçulmanos em geral.