Dalmo
Duque dos Santos
> Ressurreição e Reencarnação: imagens
e palavras
Escrever sobre Ressurreição
e Reencarnação para espiritualistas e não
espiritualistas é como escrever sobre Semiótica e
Psicanálise, nos seus primeiros tempos, para os iniciados
e não iniciados: corremos sempre o risco de sermos mal compreendidos.
Não se tratam somente de assuntos cujos conceitos convencionais
são padrões conhecidos intelectual e socialmente.
Ainda não conseguimos saber se podemos atingir o objetivo
de escrever sobre algo tão simples quando o colocamos na
esfera da compreensão emocional e, ao mesmo tempo tão
complexo, quando o restringimos ao círculo do entendimento
intelectual. Como essa questão vai muito além da lingüística
e cai na condição subjetiva e relativa de que se reveste
essa capacidade de entendimento do iniciado ou não iniciado,
buscamos o meio termo. Escrevemos ao mesmo tempo para os dois tipos
de leitores na certeza de que estaríamos dialogando sempre
com o imprevisível e o contraditório que é
o ser humano: podemos ser profundamente incompreendidos e superficialmente
compreendidos; e vice-versa.
Para esclarecer melhor este raciocínio, sobre os enigmas
e as tramas da linguagem, da qual nos referimos no item anterior,
exemplificaremos com a narrativa de um fato relatado no Evangelho
de São João, capítulo III, versículos
de 1 a 12. Tal relato, essencialmente metalingüístico,
é muito oportuno no seu significado emblemático sobre
a relatividade do saber e do compreender, e pode ser analisado em
sua estrutura narrativa, antes de qualquer análise filosófica
ou religiosa. Se lhe aplicarmos, por exemplo, alguns conceitos analíticos
propostos por Vladmir Propp em “Morfologia do Conto”,
poderemos compreender melhor o grau de importância do uso
de uma linguagem e do vocabulário específico num trabalho
literário dessa natureza. Para realizar essa analogia vamos
seguir os passos de Edward Lopes, em “Discurso do
Texto e Significação” sobre literatura
e metalinguagem, e assim explicado por Anna Maria Balogh
[1]:
“Num primeiro momento, a análise
lingüística contempla os membros da frase (a lingüística
frasal) e, num segundo momento, dedica-se à transposição
do limite da frase para desvendar as características do
discurso – a lingüística transfrasal. Este segundo
momento é de grande relevância para a análise
da literatura, cujas características específicas
desvendam-se precisamente neste nível.”
Vamos ao trecho evangélico,
no qual destacamos as frases da nossa analogia:
“Ora, havia um homem, entre
os Fariseus, chamado Nicodemos, senador dos Judeus, que foi à
noite encontrar Jesus e lhe disse: - Mestre, sabemos que vieste
da parte de Deus para nos instruir como um doutor; porque ninguém
poderia fazer os milagres que fazeis, se Deus não estivesse
com ele. Jesus lhe respondeu: - Em verdade, em verdade vos digo:
Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de
novo. Nicodemos lhe disse: - Como pode nascer um homem que já
está velho? Pode ele entrar no ventre de sua mãe,
para nascer uma segunda vez? Jesus lhe respondeu: Em verdade,
em verdade vos digo: Se um homem não renascer da água
e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.
O que é nascido da carne é carne, e o que é
nascido do Espírito é Espírito. Não
vos espanteis do que eu vos disse, que é preciso que nasçais
de novo. O Espírito sopra onde quer, e ouvis sua voz, mas
não sabeis de onde ele vem e para onde ele vai. Ocorre
o mesmo com todo o homem que é nascido do Espírito.
Nicodemos lhes respondeu: - Como isso pode se dar? Jesus lhe disse:
- Que! Sois mestre em Israel e ignorais essas coisas? Em verdade,
em verdade vos digo que não dizemos senão o que
sabemos, e que não testemunhamos senão o que vimos;
entretanto, vós não sabeis nosso testemunho. Mas
se não me credes quando vos falo das coisas da Terra, como
crereis quando vos falar das coisas do céu? (João,
cap.III,v. 1 a 12).”
O que podemos identificar primeiramente
aqui é um “Programa Narrativo”
em cuja seqüência Nicodemos é o ator/ atuante
que procura Jesus para uma “conversa reservada”,
na qual precisa desvendar “o segredo” do Reino de Deus.
Para tanto, é submetido a uma “prova de competência”,
pois o segredo não pode ser revelado através de palavras,
mas da capacidade de decodificação dos significados
ocultos dessas palavras, e que escapam ao critério comum
da percepção intelectual. A revelação
nesses casos só acontece quando a percepção
intelectual é superada por outra percepção,
cujo acesso inicial é realizado por uma outra forma de inteligência,
fora dos padrões intelectuais conhecidos. Esta seria uma
experiência da inteligência emocional, segundo os conceitos
mais recentes de Howard Gardner [2].
Essa passagem do grau de inteligência intelectiva para o grau
de inteligência emocional sofre impasses quando Nicodemos
faz perguntas cheias de signos inadequados e incompatíveis
com os signos de metalinguagem utilizada por Jesus, daí à
sua reação de indignação: “Que!
sois mestre em Israel e ignorais essas coisas?”
Ao entrar em contato anteriormente
com as pregações de Jesus, Nicodemos sofrera um dano
existencial, uma dúvida crucial em forma de carência,
cujas causas e conseqüências não são citadas,
mas estão inferidas no Programa Narrativo; e não se
sabe se ele conseguiu superar as provas a que foi submetido. O que
ficou claro é que o significado do “Reino de
Deus” (do hebraico “malkuth”,
ou “estado de coisas”) era tão
essencialmente oculto e subjetivo que Jesus e Nicodemos pareciam
estar falando linguagens totalmente diferentes. Estudando mais detalhadamente
esse e outros diálogos de Jesus com interlocutores que o
abordavam com questões existenciais, podemos concluir que
ele nunca pôde teorizar esse conhecimento ou decifrar essa
linguagem de forma explícita; o máximo que conseguiu,
em termos de linguagem, foi através das parábolas,
que por sua vez, parecem ser, o signo do signo, o enigma do enigma.
Com exceção da parábola do Semeador, que é
“a parábola das parábolas” [3],
todas elas ocultam diferentes graus de compreensão e somente
os exemplos vivenciais do próprio Jesus é que rompiam
os limites cognitivos dos receptores, para atingir finalmente o
alvo, localizado no campo comportamental, da mudança de atitudes.
Se na narrativa de São João a expressão “nascer
de novo” veio sendo ensinada pela tradição
ortodoxa das igrejas e compreendida como um dogma enigmático,
que é a “Ressurreição”,
no Espiritismo ela adquiriu um sentido de heresia, o dogma da “Reencarnação”.
Repare que ambos são dogmas, mas este último, como
já explicamos, é proposto no Espiritismo no sentido
racional grego, que significa, respectivamente, como o termo “heresia”,
“idéia” e “autonomia
de pensamento”.
O que estamos querendo ressaltar aqui, novamente, é que “Ressurreição”
e “Reencarnação” são
lexemas iguais com significações diferentes e, portanto,
para escrever sobre esse novo enfoque é necessário
clarificar essas idéias com um vocabulário novo e
específico sobre as mesmas. A Reencarnação
também era um lexema cultural milenar e que agora veio sendo
reafirmado e repercutido socialmente com novas significações.
Isso aconteceria também com velhos conceitos como “karma”,
“profecia”, “aparições”,
“milagres”, “predições”,
“almas”, etc.
Um outro aspecto interessante da literatura espírita é
o seu caráter revelador da realidade metafísica, mas
que, se for desconsiderada em tal característica, confunde-se
perfeitamente com o gênero da ficção, sobretudo
a de natureza científica. Quem lê um fragmento de uma
narrativa extraída de uma das centenas de obras “psicografadas”
pelo médium brasileiro Francisco Cândido Xavier pode
ao mesmo tempo encará-la como a revelação de
uma realidade próxima e acessível pelas vias naturais
da morte, ou então pela lógica ficcional de um H.G.
Wells ou, nesse caso, especificamente um Aldous Huxley, em “Admirável
Mundo Novo” (1932). O relato a que nos referimos
é do livro “Missionários da Luz”
[4], da série “André
Luiz” [5], pseudônimo
do Espírito de um médico morto no Rio de Janeiro na
década de 1920:
“Constituía-se o movimentado
centro de serviço de vários prédios e numerosas
instalações. Árvores acolhedoras enfileiravam-se
através de extensos jardins, imprimindo encantador aspecto
à paisagem. Reconheci logo o instituto que se caracterizava
por grande movimento (...) Muitos desses irmãos, que passavam
junto de nós, empunhavam reduzidos rolos de substância
semelhante ao pergaminho terrestre, relativamente aos quais não
possuía eu, até então, a mais leve notícia.
Alexandre, porém, como sempre, veio em socorro de minha
estranheza, explicando, bondosamente:
- As entidades sob os nossos olhos são trabalhadores de
nossa esfera, interessados em reencarnações próximas
(...) Os rolos brancos que conduzem são pequenos mapas
de formas orgânicas, elaborados por orientadores de nosso
plano, especializados em conhecimentos biológicos da existência
terrena. Conforme o grau de adiantamento do futuro reencarnante
e de acordo como o serviço que lhe é designado no
corpo carnal, é necessário estabelecer planos adequados
aos fins essenciais.
- E a lei da hereditariedade fisiológica? – perguntei.
- Funciona com inalienável domínio sobre todos os
seres em evolução, mas sofre, naturalmente a influência
de todos aqueles que alcançam qualidades superiores ao
ambiente geral.
(...) Aproximando-nos dos pavilhões de desenho, onde numerosos
cooperadores traçavam planos para reencarnações
incomuns, foi o meu novo companheiro procurado por uma entidade
simpática que lhe pedia informações. Manassés
apresentou-ma, otimista. Tratava-se de um colega que, depois de
quinze anos de trabalho nas atividades de auxílio, regressaria
à esfera carnal para a liquidação de determinadas
contas. O recém-chegado parecia hesitante. Via-se-lhe o
receio, a indecisão.
- Temo contrair novos débitos ao invés de pagar
os velhos compromissos. É tão penoso vencer na experiência
carnal, em vista do esquecimento que sobrevém à
encarnação...
- Mas seria mais difícil triunfar guardando a lembrança
– redarguiu Manassés, incontinenti
- (...) Pode me informar se o meu modelo está pronto?
- Creio que poderá procurá-lo amanhã –
tornou Manassés, bem disposto -; já fui observar
o gráfico inicial e dou-lhe parabéns por haver aceitado
a sugestão amorosa dos amigos bem orientados, sobre o defeito
na perna. Certamente, lutará você com grandes dificuldades
no princípio da nova luta, mas a resolução
lhe fará grande bem.
- Sim – disse o outro – algo confortado -, preciso
defender-me contra certas tentações de minha natureza
inferior e a perna doente me auxiliará, ministrando-me
boas preocupações. Ser-me-á um antídoto
à vaidade, um sentinela contra a devastação
do amor-próprio excessivo.
- Muito bem! – respondeu Manassés, francamente otimista.
- E pode me informar-me ainda a média de tempo conferida
à minha forma física futura?
- Setenta anos, no mínimo – redarguiu meu novo companheiro,
contente.
O outro fixou uma expressão de reconhecimento, enquanto
Manassés continuava:
- Pondere a graça recebida, Silvério, e, depois
de tomar-lhe a posse no plano físico, não volte
aqui antes dos setenta. Trate de aproveitar a oportunidade. Todos
os seus amigos esperam que você volte, mais tarde, à
nossa colônia, na gloriosa condição de um
“completista.”
A narrativa já é, por si mesma, estranha e descolada
da nossa realidade e suas referências sócio-culturais.
Cada uma dessas expressões acentuadas em destaque
traz escondida uma carga de informações doutrinárias
cuja compreensão de significados foge ao leitor não
iniciado. Somente a última delas, a palavra “completista”
foi explicada pelo narrador como um conceito ou status dado aos
Espíritos que retornam da experiência carnal sem desperdício
de energias e prejuízo do vaso físico através
de “extravagâncias”, suicídios
indiretos, que lhe causam graves desequilíbrios psíquicos
na transição e adaptação ao novo ambiente,
diríamos, “espiritual”.
Esse relato de André Luiz [6]
foi feito em 1945, sendo uma seqüência de dois livros
publicados em 1942 (Nosso Lar) e 1944 (Os
Mensageiros), mas a narrativa se passa num tempo bem anterior
à publicação, em 1939, pouco antes do início
da II Guerra Mundial. O interessante é que, além do
problema da linguagem, estes livros adiantam informações
que somente seriam compreendidas cientificamente, no aspecto técnico
e ético, após 50 anos, na década de 1990, quando
começaram a surgir as primeiras experiências genéticas,
sobretudo o Projeto Genoma. Tal projeto, cuja intenção
de decifrar os genes com finalidades planificadoras e resultariam
nas discussões éticas da clonagem humana, já
era do conhecimento de seres em esferas de existência como
essa descrita por André Luiz.
Muitas outras informações científicas “futuristas”
foram anunciadas, nestes e em outros livros, mas a nossa intenção
aqui não foi apenas destacar, como já foi dito, o
aspecto da especificidade do vocabulário e da linguagem.
Aqui está uma excelente oportunidade para refletirmos como
a nossa mente, e todo o universo íntimo que ele ora representa,
é sempre um terreno de fertilidade duvidosa. Dependendo das
circunstâncias, as sementes lançadas podem germinar
ou não, de acordo com a nossa disposição espiritual.
Como bem observou o filósofo Huberto Rohden, ao explicar
a parábola do Semeador, não se trata da agronomia
física, mas da “agronomia metafísica”.
Se Jesus soubesse da “esterilidade”
espiritual de Judas, não teria perdido seu tempo com o mais
imaturo dos seus discípulos. No entanto, respeitou nele o
livre arbítrio e a possibilidade de Judas romper essa barreira
íntima da compreensão das coisas ocultas. Essa é,
ao nosso ver, uma das grandes diferenças entre perceber o
que é existir e o que é viver.
Dalmo Duque dos Santos
é mestre em Comunicação, bacharel em História
e pedagogo. Publicou pela DPL os ensaios “Você em Busca
de Si Mesmo” e “A Inteligência Espiritual”.
Está lançando pela mesma editora uma história do
Espiritismo com o título “O Demolidor de Dogmas –
Allan Kardec e a Reconstrução da Fé no Ocidente”.
Referências:
[1] “Conjunções
– Disjunções – Transmutações
da Literatura ao Cinema e à TV”, páginas 27 e 46.
Anna-Blume/ Eca-Usp. São Paulo, 1996.
[2] “A Inteligência Espiritual”. Dalmo Duque dos Santos.
DPL Editora. São Paulo, 2000.
[3] Cairbar Schutel. “Parábolas e Ensinos de Jesus”.
Editora o Clarim. Matão, SP, 1979.
[4] Capítulo 12 – “Preparação de Experiências”.
[5] FEB Editora. Rio de janeiro.
[6] O estudo “Chico Xavier: o Homem Futuro”, de J. Herculano
Pires, publicado na Revista Planeta, em 1973, explica com mais detalhes
esse fenômeno literário.
Fonte: http://www.ieja.org
Leiam outros textos do mesmo autor :
Dalmo Duque dos Santos
->
Os 40 Anos do CEAE-Genebra
->
Os 60 anos da primeira escola de Espiritismo
->
Adão não estava lá
->
André Luiz: É tudo verdade?
->
Aristóteles e o "animais espíritas"
->
Ataques a obras e autores
->
Código secreto de Chico Xavier?
->
Conhecimento e Verdade
->
Cultuar Rivail e ocultar Kardec
->
CVV 50 anos
->
De novo a pedagogia espírita
-> A
degeneração do Espiritismo
->
Em busca de Kardec educador
->
Espíritas no umbral e as Escolas de Vingança
->
Espiritismo e cultos afro-indígenas: continuamos iguais nas diferenças
->
Espíritos nas escolas: encarnados e desencarnados no cotidiano escolar
->
Francisca Júlia Silva por Chico Xavier
->
Jaci Régis e o Espiritismo Laico
->
Kardec insuperável?
->
As novas gerações de espíritos
->
Plinio Marcos e os turrões espíritas
->
A proposta educativa de Jesus e do Espiritismo
->
Quem se importa com o Espiritismo?
->
Ramatis segundo Emmanuel
->
Ratatouille segundo o Espiritismo
->
Ressurreição e Reencarnação: imagens e palavras
->
Rohden, os teólogos e o Espiritismo
->
A sombria e majestosa Mantiqueira
->
A Torre do Tempo
->
A utopia de Carl Rogers
->
Vidas passadas ou reencarnação?
->
Visão estratégica de Edgard Armond se concretiza
|