Jorge
Rizzini
> J. Herculano Pires, o fiel tradutor de Kardec
O Apóstolo de Kardec -
O Homem, a Vida, a Obra
de Jorge Rizzini
Editora Paideia
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Orientador das edições
da Edicel, Herculano Pires incentivara Frederico Giannini a publicar
a coleção completa das obras de Allan Kardec, incluindo
a Revista Espírita, cujos doze volumes
totalizavam 4.800 páginas, que o saudoso companheiro Júlio
Abreu Filho andava a traduzir há anos, pacientemente, mesmo sentindo-se
doente. A empreitada editorial era arriscada e Giannini, embora sem
possuir grandes posses, assinou o contrato redigido por Herculano Pires
em 18 de outubro de 1966. O apóstolo de Kardec reafirmara o compromisso
de traduzir as obras da Codificação.
Em seu diário (Herculano Pires)
fez a seguinte anotação:
“Firmei contrato com o Sr.
Frederico Giannini Júnior, da Edicel (Editora Cultural Espírita)
para a tradução dos demais livros da Codificação,
com as correções, anotações e introduções
necessárias em cada volume, e a correção e ordenação
da Revista Espírita.”
E acrescentou:
“Uma trabalheira sem limites.
É preciso que me empenhe a fundo nesse trabalho, pois a obra
de Kardec vem saindo em traduções sucessivamente decalcadas
umas das outras, em português e castelhano. Além disso,
não há uma edição explicada e anotada.
Os volumes são apresentados ao público de hoje no mesmo
texto de há um século, sem uma informação,
uma anotação, nada de nada, e geralmente em traduções
mal cuidadas. Sinto-me pequeno para a grandeza da tarefa, mas sou
obrigado a reconhecer que tenho de fazê-la sozinho, a menos
que Deus permita o aparecimento de alguém para ajudar. Já
lutamos para descobrir pessoas capazes e não encontramos ninguém.
Até concurso o Giannini promoveu, e nada! Têm-se a impressão
de que o francês é, no Brasil, uma língua mais
desconhecida do que o etrusco... Há muitos tradutores traditori,
mas para um trabalho realmente sério não aparece ninguém.”

Mestre Júlio Abreu Filho,
tradutor dos 12 volumes da Revista Espírita.
Desencarnou em 28-09-1971.
Decorrido algum tempo, porém,
Herculano Pires veio a conhecer a mestra em francês Sylvia Mele
Pereira da Silva, a quem confiou a tradução de Obras
Póstumas, de Kardec, alertando-a que a regra geral para
tradução, particularmente no caso de obras doutrinárias
do Espiritismo, era “a maior fidelidade ao texto original,
com o maior respeito pela nossa língua. Isso quer dizer –
acrescentou – que a fidelidade não implica o prejuízo
do texto português. Pelo contrário, queremos que o leitor
brasileiro tenha a impressão de estar lendo um texto escrito
primitivamente em português (e português do Brasil). A razão
dessas exigências é a seguinte: as obras doutrinárias,
particularmente as de Kardec, são documentos da Doutrina. São
básicas. A mudança de uma palavra pode modificar o sentido
original ou dar-lhe a possibilidade de nova interpretação.
E estamos lutando para repor Kardec em sua legitimidade, a mais absoluta”.
[1]
Aprovada por Herculano Pires como tradutora, Sylvia Mele Pereira
da Silva traduziu, após Obras Póstumas,
A Gênese e a segunda parte de O
Céu e o Inferno, sendo que a primeira parte coube
a Herculano Pires, que traduziu também O Livro dos
Espíritos, O Livro dos Médiuns
e O Evangelho Segundo o Espiritismo. Essas
seis obras fundamentais de Kardec e o volume Iniciação
Espírita foram magistralmente prefaciadas por ele, que lhes adicionou
inúmeras notas esclarecedoras ao pé das páginas
[2].
Herculano Pires era um tradutor perfeccionista. No capítulo onze
desta obra comentamos a tradução por ele feita de O
Livro dos Espíritos. Pois bem: anos depois, por
incrível que pareça, a refez. E expôs suas razões
em um artigo publicado no “Diário de São
Paulo” (edição de 11 de março
de 1968), do qual extraímos alguns tópicos que mostram,
mais uma vez, sua fidelidade ao texto da Codificação e,
portanto, à Falange do Espírito de Verdade.
“Por maior
clareza que tenha a sua linguagem (a d’O Livro dos
Espíritos), há problemas de tradução
e questões de Ciência, de Filosofia, de Religião,
de Teologia, de Psicologia, de Sociologia, de História e de
outros campos do conhecimento que necessitam às vezes de explicações.
Para exemplificar, tomemos a primeira questão, que tem chocado
muita gente logo no começo do primeiro capítulo. Trata-se
do item segundo, cuja resposta deixa os leitores “no ar”,
como se costuma dizer. Kardec pergunta o que devemos entender por
infinito e os Espíritos respondem: “O que
não tem começo nem fim; o desconhecido, tudo o que é
desconhecido é infinito”. Como se vê,
estamos diante de uma resposta absurda. Mas é preciso lembrar
que os Espíritos respondiam em francês e que existe em
francês uma expressão que tem sentido próprio
na língua, sem correspondência plena em português:
passer du connu à l’inconnu,
ou seja, passar do conhecido ao desconhecido. A tradução
da resposta ao pé da letra é absurda, mas a tradução
significativa a torna clara e precisa, embora ainda necessite de uma
nota explicativa, como fizemos.
Outro caso é o da expressão esprits follets
e legers, geralmente traduzida por duendes, o que destoa
do sentido do contexto, como se vê na pergunta 362. Sabemos
que esprit follet quer dizer duende, mas o acréscimo do adjetivo
leviano e o sentido do texto exigem uma compreensão diferente.
Na pergunta 392 deparamos com outro caso. Respondendo sobre a situação
do Espírito reencarnado, os Espíritos dizem: par
l’oubli du passé il est plus lui même,
o que sempre se traduz por: “esquecido do passado ele é
mais senhor de si”, quando o certo, e de um sentido muito mais
exato, é assim: “pelo esquecimento do passado ele é
mais ele mesmo”. São pequenos exemplos que servem para
dar ao leitor uma ideia dos problemas de tradução que
procuramos resolver. Por exemplo, nas referências ao Materialismo,
itens 147 e seguintes, Kardec faz afirmações que parecem
errôneas, se não lembrarmos ao leitor que o Marxismo
só apareceu dez anos mais tarde. O mesmo se dá quanto
à antiguidade e à modernidade do Espiritismo, na pergunta
221, que tem dado muito pano para manga.
Outro caso curioso está no capítulo V do Livro II, numa
referência à Teosofia. Os leitores não sabem,
quase sempre, que a Sociedade Teosófica só apareceu
em 1875, de maneira que Kardec não se refere a ela. Já
vimos acusações a Kardec, por ignorar a existência
da referida Sociedade, que na verdade ainda não existia. Questões
de Psicologia e Pedagogia, como as constantes dos itens 379 e seguintes,
são passadas por alto. Um comentário de Kardec à
pergunta 521 dá-nos a chave da interpretação
espírita da Mitologia e abre-nos as perspectivas de uma Sociologia
interexistencial. Se não advertirmos o leitor quanto à
atualidade e o acerto dessas referências, ele poderá
considerá-las supersticiosas, como já tem acontecido.
Questões curiosas como a do dilúvio, a do mito de Adão
e Eva, a do instinto, que hoje são tratados como novidade por
várias disciplinas culturais, estão resolvidas em O
Livro dos Espíritos e é necessário
que se mostre isso ao leitor. No tocante ao instinto, há mesmo
uma doutrina específica que tem permanecido oculta: Os Espíritos
e Kardec admitem duas formas de instinto: a biológica e a espiritual.
Veja-se a respeito o item 557 e a nota explicativa da edição
da Edicel. Na pergunta 595, quando os Espíritos respondem que
“os animais não são máquinas,
como supondes”, muita gente se admira e pergunta
quem considerou os animais como máquinas. Era a opinião
cartesiana vigente na época. Na pergunta 605 os Espíritos
levantam um dos mais característicos problemas filosóficos
de hoje: do “ser do corpo”, que passa inteiramente despercebido
da maioria dos estudiosos. Todos esses problemas têm de ser
assinalados para que o leitor, e em particular o estudante de Espiritismo,
compreendam a amplitude e o valor da obra. E também para que
os apressados não formulem críticas sem fundamento a
Kardec, confundindo o público.
No tocante à Teologia, há numerosas passagens, como
as do capítulo sobre a lei natural (ou divina) que oferecem
conotações filosóficas importantes e que não
podem deixar de ser esclarecidas. O problema da ideia inata de Deus
(e em geral das ideias inatas) que tem servido para agressões
violentas à Doutrina, é outro que requer explicações,
mostrando como o Espiritismo está certo e de acordo com grandes
correntes de pensamento do passado e do presente, e mesmo com hipóteses
atuais da Psicologia e da Pedagogia. A questão da moral (quanto
se acusou e ainda se acusa o Espiritismo de antiquado nesse terreno)
precisa ser confrontado com os conhecimentos atuais para se ver que
o Espiritismo antecipou muitas “novidades” do nosso tempo.
Essas as razões do nosso empenho em traduzir de novo não
só O Livro dos Espíritos,
mas toda a Codificação, anotando o mais possível
cada volume, para que o estudo doutrinário possa ser feito
em sintonia com a nossa atualidade cultural. Curioso que O
Livro dos Médiuns levanta um número ainda
maior de problemas do que a obra básica O Evangelho.
É um livro que está ligado aos problemas atuais da pesquisa
parapsicológica e mostra como o Espiritismo avançou
no futuro e ainda abre novas perspectivas para o amanhã. Impossível
continuarmos a publicar as obras da Codificação apenas
textualmente, numa repetição de fórmulas antigas
de tradução.
Por todas essas razões, dadas assim no correr das teclas, sem
maior aprofundamento, os leitores podem ver que não fizemos
simplesmente “uma nova tradução”. As novas
edições das obras da Codificação que estão
saindo sob nossa responsabilidade representam uma contribuição
para o maior aprofundamento do seu estudo entre nós. Enganam-se
os que dizem, dando de ombros: “Ah, já tenho esses livros!”
Podemos assegurar que não os têm. E podemos dizer isso
sem nenhum constrangimento, pois não estamos fazendo mais do
que cumprir o nosso dever para com a Doutrina e para com os nossos
companheiros de estudos.”
No tocante à Revista Espírita,
o trabalho de Herculano Pires, pelo fato de ser ele perfeccionista,
foi assaz minucioso. O mestre, assessorado por dois intelectuais franceses
residentes em São Paulo, Miguel Maillet e a professora Anne Marie,
confrontou a edição francesa com os originais em português.
A pesquisa fora microscópica e a Herculano Pires não pareceu
perfeita a tradução de determinados parágrafos.
Então, o mestre pôs mãos à obra porque o
contrato com a Edicel o autorizava “a corrigir o português
apressado e tumultuado do texto; a dar-lhe, sempre que necessário,
respeitando naturalmente o estilo pessoal do tradutor, a forma mais
clara e adequada à índole da nossa língua; a corrigir
os erros evidentes da tradução no confronto com o texto
original francês”.
Merece destaque especial o fato de que numerosas poesias inseridas por
Allan Kardec na Revista Espírita foram
traduzidas por Herculano Pires e publicadas, para confronto, juntamente
com o texto original francês. E mais: alguns volumes dessa obra
monumental de Allan Kardec editada, primorosamente, por Frederico Giannini
foram prefaciadas por Herculano Pires, que via na Revue
Spirite toda a História do Espiritismo.
No longo e admirável prefácio que redigiu para o primeiro
volume da Revista Espírita, sentenciou Herculano
Pires:
“Podemos
acompanhar nestas páginas, passo a passo, o esforço
ao mesmo tempo grandioso e minucioso de Kardec na construção
metódica da Doutrina e na estruturação do movimento
espírita. A História do Espiritismo se nos apresenta,
assim, como uma forma de vivência que se autofixou na escrita.
(...) Nada se oculta ao leitor. Os problemas, as preocupações
de Kardec, suas lutas dentro e fora do meio espírita, suas
vitórias tranquilas, sua resistência à calúnia,
à mentira, à difamação, sua fé
inabalável, tudo isso palpita nestas páginas e nos dá
a impressão de vivermos ao lado do Codificador, na sua época.
(...) Por isso podemos afirmar que a publicação desta
coleção marca uma nova era do Espiritismo no Brasil
e em todo o continente.”
[1] Carta de Herculano Pires, sem data,
endereçada a Sylvia Mele Pereira da Silva.
[2] Deve-se também a Herculano Pires (irmão Saulo) a tradução
e complementação do livro O Tesouro dos Espíritas
(Guia Prático para a Vida Espiritual), de Miguel Vives, um dos
pioneiros do Espiritismo na Espanha.
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100
anos de "O Livro dos Espíritos"
Ação
Espírita na Transformação do Mundo
Agonia
das Religiões
Analítica
de Deus
Arigó:
vida, mediunidade e martírio
Biografias
e bibliografia
O
Centro e a Comunidade
Centro
Espírita
O
Centro Espírita
Ciência
Espírita e suas implicações terapêuticas
Ciência
e Superstição
Conceito
de mediunidade
Concepção
Existencial de Deus
Conteúdo
Resumido das Obras de J. Herculano Pires
A
Criação do Homem
Curso
Dinâmico de Espiritismo - O Grande Desconhecido
Da
Serenidade Humana
Das
necessidades das sessões espíritas e das condições
para a sua realização
Desaparece
o Sectarismo à medida que se desenvolve o Cristianismo
O
Desenvolvimento Científico
A
Desfiguração do Cristo
O
Despertar da Existência
DEUS
Educação
para a Morte
Epistemologia
Espírita
O
Espírita e o Mundo Atual
Espiritismo
Dialético
O
Espírito e o Tempo
Evolução
Espiritual do Homem - Na perspectiva da Doutrina Espírita
Filosofia
e Espiritismo
Filosofia
viva e racional, sem o espírito de sistema
O
homem no mundo como ser na existência
O
Homem Novo
O
Infinito e o Finito
Introdução
à Filosofia Espírita
Irrefutáveis
as provas da sobrevivência humana
Kardec
e a evolução do Espiritismo
A
Lenda do dilúvio
Mediunidade
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Menino e o Anjo
O
Método de Kardec
O
Mistério do Bem e do Mal
O
Mistério do Ser ante a Dor e a Morte
Motivos
de dificuldades nas curas
Na
Hora do Testemunho
Nascimento
da Educação Espírita
No
Limiar do Amanhã - (Lições de Espiritismo)
Obsessão
- o Passe – a Doutrinação
Parapsicologia
e Interpretações Pessoais
Parapsicologia
Hoje e Amanhã
Pedagogia
Espírita
A
Pedagogia de Jesus
A
Pedra e o Joio
Pesquisa
sobre o Amor
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Problema da violência
Que
Ciência é essa?
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Reino
Restabelecendo
o equilíbrio nas relações corpo-espírito
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do Cristianismo
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Três Caminhos de Hécate
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tomada de consciência
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Dor e o Tempo / Elevação
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& Ramos, Clóvis
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