Estudamos a questão sobre a Pureza
Doutrinária segundo a própria Doutrina
Espírita. Mostramos que a Pureza Doutrinária interpretada,
como disse Jesus, em Espírito e Verdade,
nada mais seria do que vivenciar o Espiritismo em toda e qualquer
circunstância. Apresentamos alguns exemplos de atitudes do
próprio Kardec perante algumas novidades de seu tempo, para
ilustrar a pureza doutrinária segundo o ponto de vista do
codificador. Algumas mensagens recebidas recentemente da Espiritualidade
Superior são citadas em apoio às nossas conclusões.
1. INTRODUÇÃO:
A NECESSIDADE DE CLAREZA DE LINGUAGEM
Um dos maiores cientistas que a humanidade
conheceu, Werner Heisenberg (1901-1976), descobridor do princípio
de incerteza e um dos criadores de uma formulação matricial
da Mecânica Quântica, é dono da seguinte afirmativa
(1,2): “(a respeito das filosofias
de Democritus e Platão) (...) Pelo contrário, a
vantagem principal que nós podemos deduzir a partir do progresso
da ciência moderna é aprender o quão cautelosos
nós temos que ser com a linguagem e com o significado das palavras.”
E, falando a respeito das discussões entre Sócrates
e seus opositores, Heisenberg diz que (2,3):
“... Sócrates tinha consciência de quantos
equívocos podiam ser engendrados pela falta de cuidado no uso
da linguagem; o quão importante é usarem-se termos precisos
e elucidarem-se conceitos antes de empregá-los.”
A questão sobre a clareza da linguagem também
foi analisada por Kardec. O ítem I da Introdução
de O Livro dos Espíritos (4),
a respeito dos vocábulos espírita e espiritismo, apresenta:
“Para se designarem coisas novas são precisos termos
novos. Assim o exige a clareza da linguagem, para
evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das
mesmas palavras.”(Grifos nossos)
Os Espíritos superiores também se preocuparam com isso
e, em resposta à questão número 28 de O
Livro dos Espíritos (4),
disseram que “As palavras pouco nos importam. Compete-vos
a vós formular a vossa linguagem de maneira a vos entenderdes.
As vossas controvérsias provêm, quase sempre,
de não vos entenderdes acerca dos termos que empregais,
por ser incompleta a vossa linguagem para exprimir o que não
vos fere os sentidos.” (Grifos nossos)
A parte destacada é válida não só para
as questões espíritas mas para todo o tipo de conteúdo
doutrinário, filosófico, científico e religioso.
Nesse sentido, em busca da clareza da linguagem, vamos iniciar
a presente análise pelo significado das palavras que compõem
a expressão “Pureza Doutrinária” (PD para
simplificar, daqui em diante).
O termo pureza expressa, simplesmente, a idéia de “algo”
que não apresenta mistura com outras “coisas”.
Essa definição, porém, carece de sentido se não
definirmos, também, o significado desse “algo”
e das “coisas” que são diferentes do “algo”.
Por exemplo, a água destilada pode ser considerada pura no
sentido de que ela consiste apenas de um tipo de substância,
sem a mistura ou presença de outras substâncias. Mas,
a água potável também pode ser chamada de pura
desde que definamos o grau de pureza da água em termos da qualidade
para o consumo. A água potável não é pura
se considerarmos o grau de pureza em termos das substâncias
contidas nela, assim como a água destilada não seria
pura no sentido da qualidade para o consumo. Portanto, o sentido da
palavra pureza não pode ser levado em conta de forma dissociada
do conceito próprio da “coisa” que se analisa.
O conceito de pureza também precisa estar presente num contexto
de aplicação. Por exemplo, ao questionarmos se a água
que eu estou tomando é pura ou não, estamos introduzindo
uma aplicação prática e, portanto, atribuindo
um valor ou objetivo para o conceito de pureza. Isso significa que
a análise quanto à “pureza” de alguma “coisa”
não tem valor pela “coisa” em si (que é
pura por natureza), mas sim quando nós a empregamos em nossas
vidas. Precisamos ter consciência se aquilo que estamos utilizando
é de fato o que se pensa que é.
O termo doutrinária é um adjetivo que faz referência
do “algo” a algum tipo de doutrina ou conjunto de princípios
que definem ou regem uma determinada doutrina.
Adotaremos essas definições em nossa análise
por serem bastante acessíveis ao entendimento das pessoas em
geral. A expressão pureza doutrinária, portanto, significa
a característica de tudo que uma pessoa ou grupo de pessoas
usa ou realiza de acordo com uma determinada doutrina. Como conseqüência
direta, o significado de pureza doutrinária não pode
ser obtido SEM CONHECER o que diz a doutrina em questão.
2. O QUE ENSINA A DOUTRINA ESPÍRITA?
Se PD depende do que diz a Doutrina Espírita, deduzimos de
forma direta que PD nada mais é do que a vivência ou
a prática dos ensinamentos contidos na Doutrina Espírita.
Mas, então, o que ensina a Doutrina Espírita? Que exemplos,
práticas e vivências o Espiritismo ensina? Busquemos
NO ESPIRITISMO, a resposta. Segundo a questão número
625 de O Livro dos Espíritos (4):
625. Qual o tipo
mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de
guia e modelo?
Resposta - “Jesus.”
Kardec: Para o homem, Jesus constitui o tipo da
perfeição moral a que a Humanidade pode aspirar na
Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina
que ensinou é a expressão mais pura da lei do Senhor,
porque, sendo ele o mais puro de quantos têm aparecido na
Terra, o Espírito Divino o animava. Quanto aos que, pretendendo
instruir o homem na lei de Deus, o têm transviado, ensinando-lhes
falsos princípios, isso aconteceu por haverem deixado que
os dominassem sentimentos demasiado terrenos e por terem confundido
as leis que regulam as condições da vida da alma,
com as que regem a vida do corpo. Muitos hão apresentado
como leis divinas simples leis humanas estatuídas para servir
às paixões e dominar os homens.
Concluímos daqui, que o Espiritismo
ensina que nossas práticas e vivências devem estar de
acordo com os ensinamentos de Jesus.
O primeiro e mais importante ensinamento de Jesus está contido
no Evangelho de Mateus, capítulo XXII, dentre os versículos
34 e 40: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o coração,
de toda a tua alma, de todo o teu espírito. – Esse é
o maior e primeiro mandamento. – E o segundo, que é semelhante
ao primeiro: Amarás a teu próximo, como a ti mesmo.
– Toda a Lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos.”
Vemos aqui que o Espiritismo ensina a agir em conformidade com a Lei
de Amor, mandamento mais importante deixado e exemplificado por Jesus.
Entretanto, de modo a percebermos que amar não significa “aceitar”
tudo o que nos chega, vejamos uma outra recomendação
de Jesus, (MATEUS 5:37): “Mas
seja o vosso falar: sim, sim; não não”. Para
comentar esta passagem chamamos o espírito Emmanuel, em psicografia
de Francisco C. Xavier (5): “O
‘sim’ pode ser muito agradável em todas as situações,
todavia, o ‘não’, em determinados setores da luta
humana, é mais construtivo. Satisfazer a todas as requisições
do caminho é perder tempo e, por vezes, a própria
vida. Tanto quanto o ‘sim’ deve ser pronunciado sem incenso
bajulatório, o ‘não’ deve ser dito
sem aspereza. Muita vez, é preciso contrariar para
que o auxílio legítimo se não perca; urge reconhecer,
porém, que a negativa salutar jamais perturba. O que
dilacera é o tom contundente no qual é vazada.”
(Grifos nossos). A partir desta recomendação
de Jesus e do comentário de Emmanuel fica claro para nós
que o Espiritismo não ensina a concordar sempre com tudo e
com todos e que em nome do Amor e da Fraternidade podemos sim discordar.
Aliás, Bezerra de Menezes, recentemente, disse (6): “A
vós, sob inspiração dos Guias Espirituais do
Movimento Espírita na Terra, está destinada a tarefa
infatigável de porfiar no bem, de exercitar a compaixão
e a caridade, mas não conivir, em nome da tolerância,
com o erro nem com o crime.” (Grifos
nossos). Porém, isso tem que ser feito em tom de respeito,
de forma salutar e não em “tom contundente” de
quem se crê detentor de toda a Verdade. Isso significa que sempre
deve haver diálogo e respeito entre aquele que discorda e aquele
que propõe algo diferente.
3. A NECESSIDADE DO ESPIRITISMO
Uma questão importantíssima
é saber quais os benefícios do Espiritismo para a humanidade.
Que tipo de problemas o Espiritismo pode evitar e que tipo de contribuição
o Espiritismo pode oferecer ao progresso da humanidade? Responderemos
a essas questões utilizando um outro ensinamento de Jesus (JOÃO
8:32): “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”.
É importante, também, rever alguns trechos do item II
da Introdução do Evangelho Segundo o Espiritismo
(7), sobre a “Autoridade da
Doutrina Espírita”:
(9º. Parágrafo) Uma
só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos:
a concordância que haja entre as revelações
que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número
de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.
(Grifos em itálico originais).
(2ª. frase, 13º. Parágrafo) (Sobre receber comunicações
de muitos centros espíritas sérios) Essa observação
é que nos tem guiado até hoje e é a que nos
guiará em novos campos que o Espiritismo terá de explorar.
(14º. Parágrafo) Essa verificação
universal constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo
e anulará todas as teorias contraditórias. Aí
é que, no porvir, se encontrará o critério
da verdade. (Grifos nossos).
(16º. Parágrafo) O princípio da concordância
é também uma garantia contra as alterações
que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem
apoderar-se dele em proveito próprio e acomodá-lo
a vontade.
(19º. Parágrafo) Daí a necessidade da
maior prudência em dar-lhes publicidade; e, caso
se julgue conveniente publicá-las, importa não as
apresentar senão como opiniões individuais, mais ou
menos prováveis, porém, carecendo sempre de confirmação.
Essa confirmação é que se precisa aguardar,
antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, a
menos que se queira ser acusado de leviandade ou de credulidade
irrefletida. (Grifos nossos)
Primeiro Jesus diz que devemos buscar
a Verdade porque ela nos libertará, e em seguida vemos que
Kardec demonstra que o princípio da concordância universal
entre os espíritos é uma garantia para nos encaminharmos
à Verdade. Aqui reside uma das coisas mais importantes do Espiritismo:
sua divulgação! Notemos que a atitude de prudência
em divulgar idéias que não tenham sido obtidas a partir
do critério da concordância universal dos espíritos
é defendida pelo codificador com o apoio dos Espíritos
superiores. Notemos, também, que Kardec afirma que devemos
nos precaver de sermos “acusados de leviandade ou de credulidade
irrefletida”. Ninguém diz que Kardec está sendo
indelicado, anti-fraterno ou faltando com a tolerância quando
usa essas palavras. É preciso ficar claro que a prudência
não é falta de fraternidade ou tolerância, mas
sim respeito àquele que busca a casa espírita para conhecer
o Espiritismo.
Para não esquecermos nenhum detalhe, vejamos o que está
contido no item 9 do Cap. XV do Evangelho Segundo o Espiritismo
(7):
Fora da verdade não há
salvação equivaleria ao Fora da Igreja não
há salvação e seria igualmente exclusivo,
porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o privilégio
da verdade. (...) (o Espiritismo) não diz:
Fora do Espiritismo não há salvação;
e, como não pretende ensinar ainda toda a verdade, também
não diz: Fora da verdade não há salvação,
pois que esta máxima separaria em lugar de unir e perpetuaria
os antagonismos. (Os grifos em negrito são
nossos).
O Espiritismo não defende a
idéia de que o Espiritismo possui o monopólio da Verdade.
O nosso dizer deve ser “sim sim, não não”,
como Jesus ensinou, mas não podemos defender a idéia
de que não existem outros caminhos para se chegar à
verdade. O Espiritismo diz respeito apenas ao Movimento Espírita.
O Espiritismo não pode afirmar nada sobre as outras filosofias,
exceto o fato delas serem outras. O Espiritismo NÃO condena
o estudo particular de qualquer outra doutrina, mas orienta que estudos
são mais apropriados a determinados fins dentro da Casa ou
Centro Espírita. Em nome do Espiritismo não se pode
expulsar ou criticar o irmão estudioso e interessado nos conceitos
de outras doutrinas. Porém, o Espiritismo ensina como discernir
a respeito da utilização de idéias e conceitos
de outras doutrinas ou filosofias nas atividades espíritas
para, assim, não correr o risco dessas idéias desviarem
os participantes dos principais objetivos do Espiritismo. Em apoio
a isso, vamos transcrever o que os Espíritos ensinaram na questão
628 de O Livro dos Espíritos (4):
628. Por que a verdade
não foi sempre posta ao alcance de toda gente?
Resposta - “Importa que cada coisa venha
a seu tempo. A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se
a ela, pouco a pouco; do contrário, fica deslumbrado. Jamais
permitiu Deus que o homem recebesse comunicações tão
completas e instrutivas como as que hoje lhe são dadas.
Havia, como sabeis, na Antigüidade alguns indivíduos
possuidores do que eles próprios consideravam uma ciência
sagrada e da qual faziam mistério para os que, aos seus olhos,
eram tidos por profanos. Pelo que conheceis das leis que regem estes
fenômenos, deveis compreender que esses indivíduos
apenas recebiam algumas verdades esparsas, dentro de um conjunto
equívoco e, na maioria dos casos, emblemático. Entretanto,
para o estudioso, não há nenhum sistema antigo de
filosofia, nenhuma tradição, nenhuma religião,
que seja desprezível, pois em tudo há germens de grandes
verdades que, se bem pareçam contraditórias
entre si, dispersas que se acham em meio de acessórios sem
fundamento, facilmente coordenáveis se vos apresentam,
graças à explicação que o Espiritismo
dá de uma imensidade de coisas que até agora
se vos afiguraram sem razão alguma e cuja realidade está
hoje irrecusavelmente demonstrada. Não desprezeis,
portanto, os objetos de estudo que esses materiais oferecem.
Ricos eles são de tais objetos e podem contribuir grandemente
para vossa instrução.” (Grifos
nossos)
Notem que os bons Espíritos
ao mesmo tempo que afirmam que as diferentes doutrinas espiritualistas
possuem “acessórios sem fundamento” que as fazem
parecer “contraditórias entre si”, dizem que o
estudo delas não deve ser desprezado pois elas também
contém “verdades esparsas”. Mas, isso não
significa que devemos importar práticas de outras doutrinas
já que, como os bons Espíritos também disseram
na mesma questão acima, que “a ciência sagrada
(...) dentro de um conjunto equívoco e, (...), emblemático
...”, e que esses sistemas das filosofias antigas “(...)
facilmente coordenáveis se vos apresentam, graças à
explicação que o Espiritismo dá (...)”.
Se o Espiritismo, como eles disseram, contém comunicações
mais “completas e instrutivas” qual a vantagem de utilizarmos
conceitos e práticas oriundas de outras doutrinas espiritualistas
que se acham dispersos e “em meio de acessórios sem
fundamento”? Por acaso um médico opera um paciente
utilizando os procedimentos do Séc XV só porque algumas
verdades eram conhecidas na época?
4. O QUE SERIA PUREZA DOUTRINÁRIA SEGUNDO O ESPIRITISMO?
Podemos, agora, responder à questão apresentada no título
deste artigo. Pureza Doutrinária, dentro do Movimento Espírita,
nada mais é do que agir de acordo como ensina o Espiritismo.
Não faz sentido verificar se a Doutrina Espírita é
pura pois isso é redundante. Não há necessidade
de defender algo que já é bem constituído. PD
não tem, portanto, efeito sobre a Doutrina Espírita
em si. PD se aplica ao Movimento Espírita porque este representa
a atitude das pessoas que o constituem e que precisam ter consciência
se aquilo que estudam, praticam e vivenciam reflete os ensinamentos
da Doutrina Espírita. Mas, como vimos nas sessões anteriores,
o Espiritismo não condena estudos e práticas só
por serem diferentes, mas pede discernimento e estudo para que tenhamos
consciência do que estamos fazemos. Diante de novidades, é
importante primeiro investigá-las de modo cuidadoso e profundo
para não corrermos o risco de assimilarmos algo que não
corresponda à verdade.
Apesar disso parecer simples, a falta da clareza da linguagem (vide
Introdução) levou a entendimentos equivocados a respeito
da PD. Em decorrência disso, críticas se levantam à
PD e, diante do exposto até aqui, a PD é, justamente,
a solução dos questionamentos dos que a defendem e a
combatem.
A explicação para os equívocos realizados em
nome da PD pode ser deduzida do que o Espiritismo ensina. No item
5 do Cap. VI do Evangelho Segundo o Espiritismo
(7), o Espírito de Verdade assim
se expressa com relação ao Cristianismo: “No
Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem
humana os erros que nele se enraizaram.” Da mesma forma,
são de origem humana os erros que se têm cometido em
nome da PD. O erro não está em defender PD pois PD significa
agir em conformidade com os ensinamentos espíritas que, por
sua vez, são a expressão mais pura do Evangelho. Os
companheiros que defendem a PD podem agir em desacordo com o seu real
significado, e os companheiros que consideram a PD um excesso de zelo
prejudicial ao desenvolvimento do Movimento Espírita, assim
o pensam em razão de equívocos e, talvez, abusos realizados
em nome da PD. Como o Espiritismo nos ensina que não devemos
julgar, em nome da PD também não se pode julgar. A Bondade
Divina nos situou nas posições em que melhor podemos
progredir e o erro, muitas vezes, faz parte do processo, não
nos cabendo o julgamento do próximo. O que nos cabe é
a defesa do que nós entendemos ser o correto, de acordo com
o Espiritismo, e por isso devemos defender uma PD com amor, com vivência
real do Evangelho à luz do Espiritismo.
5. EXEMPLOS DE KARDEC
Nessa seção apresentaremos dois exemplos significativos
de Kardec sobre sua postura doutrinária, como espírita,
perante algumas novidades. Esses exemplos servem como referência
de PD segundo o Kardec.
Primeiro, vamos citar a reação de Kardec ao ler as obras
de Roustaing, Os Quatro Evangelhos. Kardec,
em matéria na Revista Espírita
de Junho de 18668, assim se expressa quanto à sua apreciação
geral: “É um trabalho considerado, e que tem, para
os Espíritas, o mérito de não estar, sobre nenhum
ponto, em contradição com a doutrina ensinada por O
Livro dos Espíritos e o dos médiuns.”
Esse comentário é importante pois mostra a imparcialidade
de Kardec frente às novidades, ao mesmo tempo que revela o
exemplo de leitura crítica sem desrespeito.
Adiante, ele demonstra sua prudência dizendo que: “Conseqüente
com o nosso princípio, que consiste em regular a nossa caminhada
sobre o desenvolvimento da opinião, não daremos, até
nova ordem, às suas teorias, nem aprovação, nem
desaprovação, deixando ao tempo o cuidado de sancioná-las
ou de contradizê-las. Convém, pois, considerar essas
explicações como opiniões pessoais aos Espíritos
que as formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas,
e que, em todos os casos, têm necessidade da sanção
do controle universal, e até mais ampla confirmação
não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina
Espírita.” Esse comentário é um exemplo
de aplicação da PD perante o novo assunto: ao invés
de lançar anátema, Kardec se abstém de aprovar
ou não, aguardando o desenvolvimento futuro em que os Espíritos
poderiam confirmar ou não o conteúdo das obras de Roustaing.
Kardec esclarece que se de um lado Os Quatro Evangelhos não
se afastam dos princípios contidos em O Livro dos
Espíritos e O Livro dos Médiuns,
diferente se dá com as aplicações desses princípios
a certos fatos. Daí Kardec cita o detalhe a respeito da proposta,
contida na obra de Roustaing, de que o corpo de Jesus não era
de carne, mas sim fluídico. Kardec, sobre isso, então,
diz: “Sem dúvida, não há aí
nada de materialmente impossível para quem conhece as propriedades
do envoltório perispiritual; sem nos pronunciar pró
ou contra essa teoria diremos que ela é ao menos hipotética,
e que, se um dia ela fosse reconhecida errada, a base sendo falsa,
o edifício desmoronaria.” Notem a honestidade de
Kardec em reconhecer que a proposta não é de todo impossível.
Mas, ao mesmo tempo, reconhece a importância dessa questão
para todo um conjunto de explicações a respeito dos
fenômenos realizados por Jesus. Apesar de conhecer objeções
a essa proposta, e de considerar que ela é desnecessária
para explicar os fatos realizados por Jesus, Kardec não a prejulga
ou condena e propõe que se aguarde o futuro. Além disso,
ele deixa claro que a obra contém outros pontos bons e que
pode ser “consultada proveitosamente pelo Espíritas
sérios.”
Passados dois anos, Kardec publica A Gênese
(9) (1868) que retoma o assunto, agora,
com mais estudo e conhecimento sobre a questão. No Cap. XV,
itens de 64 a 67, sob o título “Desaparecimento do
Corpo de Jesus”, Kardec mostra que além de desnecessária,
a hipótese do corpo fluídico de Jesus não condiz
nem com os fatos nem com a análise moral da situação.
Reproduziremos apenas a conclusão de Kardec, ao final do item
66 do referido capítulo: “Jesus, pois, teve, como
todo homem, um corpo carnal e um corpo fluídico, que é
atestado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos
que lhe assinalaram a existência.”
O segundo exemplo que queremos mencionar, decorre apenas de um comentário
de Kardec sobre a proposta de alguns médicos de sua época
de que a Homeopatia poderia curar males morais. Kardec, no artigo
do mês de Março de 1867 da Revista Espírita
expõe longo argumento sobre o assunto. Novamente, em resposta
a uma carta de um médico homeopata, no número de Dezembro
de 1867, Kardec novamente expõe seu argumento. Entretanto,
ao final da matéria de Dezembro de 1867, Kardec diz que “Como
em tudo, os fatos são mais concludentes do que as teorias,
e são eles, em definitivo, que confirmam ou derrubam estas
últimas, desejamos ardentemente que o Sr. o doutor Grégory
publique um tratado especial prático da homeopatia
aplicada ao tratamento das moléstias morais, a fim de que a
experiência possa se generalizar e decidir a questão.”(Grifos
nossos). Sabemos que nos dias de hoje, diversos grupos espíritas
realizam a prática de terapias alternativas dentro do centro
espírita. Realmente, o Espiritismo não trata de terapias
alternativas, nem mesmo de Homeopatia, mas o comentário de
Kardec acima contém implicitamente uma orientação
segura e de acordo com o caráter progressivo do Espiritismo,
para quem deseja se dedicar à prática de tais terapias
dentro do Movimento Espírita. O destaque em negrito resume
a orientação de Kardec: ao invés de simplesmente
usar tais terapias alternativas, aqueles que se interessam por elas
devem buscar realizar trabalhos sérios de pesquisa, buscando
“publicar tratados práticos” sobre as mesmas, que
possam ser analisadas por outros estudiosos permitindo que a “experiência
possa se generalizar e decidir” sobre sua validade como
prática dentro do contexto das atividades espíritas.
Acreditamos que tem faltado ao Movimento Espírita um pouco
do espírito investigativo de Kardec e que se manifesta claramente
na colocação acima. Se ele fosse contrário à
pesquisa, ele não diria que os fatos é que poderiam
decidir sobre a validade de uma questão.
No caso específico da Homeopatia, cumpre esclarecer que Kardec
apenas questionou a idéia dela poder curar males morais, o
que estaria em desacordo com a mensagem do Evangelho de que somos
responsáveis pelos nossos atos. Isso não significa que,
em si, a Homeopatia não pudesse ser usada pelos bons Espíritos
no trabalho de ajuda à saúde das pessoas. A Homeopatia
é um tipo de terapia alternativa à alopatia que é
aceita pelos conselhos de medicina no Brasil e no mundo, tem sido
pesquisada de modo sério perante as ciências ortodoxas,
e tem o apoio da Espiritualidade através do fato de que muitos
centros espíritas contam com trabalhos de receituário
mediúnico. Acreditamos que a generalização do
uso de outras terapias ou práticas dentro do Movimento Espírita
requer semelhante trabalho de pesquisa (material e espiritual), para
que elas não se tornem práticas místicas, isto
é, feitas sem saber porque, como e para que.
Entretanto, diante do fato de que poucas pessoas conhecem os requisitos
de um trabalho de pesquisa mais profundo (Kardec os conhecia muito
bem) sugerimos àqueles que se interessam pelas terapias alternativas,
que contactem pesquisadores profissionais, que sejam espíritas,
e que possam orientar um trabalho de pesquisa genuíno e que
possa gerar os resultados de valor científico. Quem quiser
conhecer uma introdução ao trabalho de pesquisa científica,
pode consultar as aulas de Ciência e Espiritismo (10)
publicadas entre os Boletins do GEAE de
483 a 500, especialmente as aulas de número 14 a 18. A realização
desse tipo de trabalho investigativo (que enfatizamos ter sido um
dos fortes exemplos de Kardec perante as novidades) não só
estaria em sintonia com o Espiritismo, mas removeria a capa de misticismo
em que muitas dessas práticas se envolvem. E, se ao final de
vários trabalhos de pesquisa, se concluir que determinadas
terapias não são necessárias dentro do contexto
de atividades espíritas, não há nada do que se
envergonhar em reconhecer e modificar atitudes.
Ainda servem de exemplos interessantes, a postura prudente e imparcial
de Kardec com relação ao surgimento de romances espíritas
(11,12) e o artigo de Kardec “Espiritismo Independente”,
no número de Abril de 1866 da Revista Espírita.
6. CONCLUSÃO
Para ajudar no entendimento do que
seria pureza doutrinária, segundo o próprio Espiritismo,
utilizamos, ao longo do texto, a expressão “o Espiritismo”
com destaque em negrito e no formato itálico. Isso foi feito
com o propósito de realizar o seguinte teste. O significado
de pureza doutrinária pode ser entendido bastando substituir
a expressão “o Espiritismo”, pela expressão
“pureza doutrinária”. Esse seria, ao nosso
ver, a melhor forma de entendermos o significado de pureza doutrinária
segundo o Espiritismo.
De modo a percebermos a preocupação da Espiritualidade
com a fidelidade doutrinária, transcrevemos abaixo uma recomendação
de Bezerra de Menezes (6): “Enfrentais
no momento dificuldades que se multiplicam. Tendes pela frente desafios
inumeráveis. Lobos vestem-se de ovelhas para ameaçarem
o rebanho. Permanecei vigilantes como estais demonstrando, a fim de
passarmos às gerações do futuro a Doutrina dos
Espíritos na pulcritude e nobreza com que a recebemos de Allan
Kardec e dos Mensageiros que a compuseram.” (Grifos
nossos). Outras mensagens recentes da espiritualidade tem chamado
a atenção para o cuidado com o Espiritismo como, por
exemplo, a recente mensagem chamando os Espíritas à
“fidelidade aos projetos do Espírito de Verdade”
(13).
Se PD significa agir de acordo com o Evangelho, vamos incentivar a
PD em nossas atividades espíritas. Os equívocos em torno
do conceito de PD podem ser resumidos em duas palavras: orgulho e
egoísmo. Orgulho e egoísmo estão por detrás
das afirmativas em tom “rude”, do desrespeito e desprezo
por quem pensa diferente e, também, ocorre com quem recebe
críticas contrárias às suas idéias e não
se dispõe a meditar sobre elas e discuti-las de modo saudável.
Propomos a criação de uma campanha pela DEFESA DA PUREZA
DOUTRINÁRIA COM AMOR (isso é redundante, mas ajuda a
entender o objetivo principal). Não precisamos abrir mão
da Doutrina Espírita para sermos fraternos uns com os outros
e nos mantermos cada vez mais unidos.
O autor agradece aos Profª. Dra. Maristela Olzon D. de Souza,
Prof. Dr. Sylvio D. de Souza, e ao Amigo Carlos Iglesias (Editor do
GEAE) pela leitura crítica deste trabalho e por valiosas discussões
e sugestões.
Referências
[1] Frase original, em inglês, obtida do capítulo IV
da referência [2]: “On the contrary, the chief profit
we can derive in these problems from the progress of modern science
is to learn how cautious we have to be with language and with the
meaning of the words.”
[2] K. Wilber, Quantum Questions, Shambhala
Publications, Boston, (2001).
[3] Frase original, em inglês, obtida do capítulo IV
da referência [2]: “... Socrates was aware of how many
misunderstandings can be engendered by a careless use of language,
how important it is to use precise terms and to elucidate concepts
before employing them.”
[4] A. Kardec, O Livro dos Espíritos,
Editora FEB, 76a. Edição, (1995).
[5] Emmanuel, Psicografia de Francisco C. Xavier, Pão
Nosso, Cap. 80, Editora FEB, 18a. Edição
(1999).
[6] B. de Menezes, Psicofonia de Divaldo P. Franco,
Reformador, Dezembro pp. 446-447 (2005).
[7] A. Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo,
Editora FEB, 112a. Edição (1996).
[8] A. Kardec, Os Evangelhos Explicados, Revista Espírita Jornal
de Estudos Psicológicos Junho p. 19 (1866).
[9] A. Kardec, A Gênese, Editora FEB,
36ª Edição (1995).
[10] A. F. Da Fonseca, Aulas de Ciência e Espiritismo,
Boletin do GEAE ns. 483 a 500 (2004-2005). Internet:
http://www.geae.inf.br/pt/boletins/colecao.php
[11] A. Kardec, Os Romances Espíritas, Revista
Espírita Jornal de Estudos Psicológicos
Dezembro p. 3 (1865).
[12] A. Kardec, Notícias Bibliográficas, Espírita,
Revista Espírita Jornal de Estudos
Psicológicos Março p. 17 (1866).
[13] Camilo, Psicografia de Raul Teixeira, Reformador,
Janeiro pp. 30-31 (2006).
Fonte:
Publicado no Boletim do GEAE n. 529, 15 de Setembro de 2007
http://www.geae.inf.br/pt/boletins/geae529.html