Diante do medo e o despreparo para a morte, que acomete sobretudo as
culturas ocidentais, Heidegger afirma que é preciso viver. A
angústia do medo da finitude também pode vir de uma existência
superficial e massificada
Independente
da crença, todos vamos morrer. Esse é um evento tão
comum quanto o fato de nascer, crescer, ter filhos... Porém,
tal assunto causa espanto, e a morte passa a ser vista como uma desgraça;
mas morrer é um evento natural e, acima de tudo, necessário:
morrer é tão importante quanto nascer.
A morte nos causa tanto medo e angústia
que é mais cômodo não entrar em contato com ela.
O objetivo deste artigo é apresentar a ideia de morte como necessidade
para a vida, um elemento que não é antagônico. É
comum percebermos que os indivíduos procuram, ao máximo,
afastarem-se da morte, principalmente nas sociedades ocidentais, pois
o que mais é valorizado em tais sociedades é a superficialidade
e o narcisismo. É necessário, também, analisar
a morte enquanto direito de morrer, bem como a sua beleza e seu potencial
singularizador numa sociedade de massa.

A SOCIEDADE ATUAL ESTIMULA A
CULTURA DO NARCISISMO, EXISTE UMA ESPÉCIE DE CRENÇA, QUASE
QUE INABALÁVEL EM NOSSA SUPOSTA IMORTALIDADE
O MEDO DA MORTE
De acordo com a interpretação de Sigmund Freud (1856-1939),
na Mitologia grega, a morte aparece como elemento contrário à
integração. Essa força, chamada morte, representada
por Tanatos, alimentaria os desejos destrutivos. Mas, quando operando
ao lado da vida, geraria o equilíbrio. O medo da morte está
em contextos antigos, como na perspectiva mítica bíblica,
segundo Norbert Elias (1897-1990): “No paraíso, Adão
e Eva eram imortais. Deus os condenou a morrer porque Adão, o
homem, violou o mandamento do pai divino. O sentimento de que a morte
é uma punição (...) desempenhou papel considerável
no medo humano da morte por um longo tempo”.¹
A limitada duração de nossa existência nos força
a viver para encarar a morte como um fato, habituando-nos a ela. Afinal,
ela é um problema genuinamente humano, que leva os indivíduos
a se protegerem da aniquilação.
Contudo, o problema não é a morte em si, mas como nos
deparamos com ela, a maneira como a conhecemos: a consciência
sobre a morte foi diminuindo com o passar dos séculos. Isso se
deve, também, ao fato de que houve um aumento na expectativa
de vida dos indivíduos, o que mostra um aumento de segurança,
consequentemente um desvio da reflexão sobre a finitude humana.
“O espetáculo da morte não é mais corriqueiro.
Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida”.²
Isso não significa que não ocorra tal evento, mas, que
o mesmo não recebe a atenção que lhe é própria,
especialmente numa sociedade narcísica, como a contemporânea.
A MORTE NA CULTURA DO NARCISISMO
A sociedade atual estimula a cultura do narcisismo, de tal maneira que
existe uma espécie de crença, quase que inabalável,
em nossa suposta imortalidade. Daí surge a necessidade de permanecer,
em que morrer representa um desastre. As exigências do sucesso
provocam enormes desgastes, levando as pessoas a se sentirem obrigadas
a atingir objetivos idealizados e a ter que ultrapassar a todo custo
suas limitações, indo além do que podem. Consequentemente,
isso gera uma supervalorização da vida, de tal maneira
que, surge a ilusão da beleza eterna e da jovialidade, próprios
da sociedade atual.
Hipnos é a personificação
do sono enquanto seu irmão gêmeo Tanatos, o da morte.
Ambos habitavam o território de Hades, no mundo subterrâneo
Christopher Lasch (1932-1994) é considerado um grande crítico
do modelo de vida próprio das sociedades industriais. E é
na sua obra, A cultura do narcisismo, que demonstra sua crítica
à nossa sociedade. Nessa obra, ele argumenta que existe, de certa
maneira, um desinteresse pelo mundo exterior, exceto à medida
que ele serve como fonte de gratificação. Temos, então,
uma busca de autoidentidade, em uma espécie de narcisismo. Para
Lasch, o narcisista representa a dimensão psicológica
dessa dependência. Não obstante, em suas ocasionais ilusões
de onipotência, o narcisista depende de outros para validar sua
autoestima. Ele não consegue viver sem uma plateia. Essa análise
nos indica que vivemos em tempos nos quais nossa individualidade depende
da aprovação dos outros, nosso mundo interior não
tem tanto prestígio: “Porque o temor de amadurecer e de
ficar velho persegue nossa sociedade; porque as relações
pessoais se tornaram tão instáveis e precárias;
e porque a vida interior não mais oferece qualquer refúgio
para os perigos que nos envolvem”.³
Para o autor, o que caracteriza tal comportamento seria a superficialidade
emocional, uma pseudoautopercepção, assim como o horror
à velhice e à morte, restando uma preocupação
com a sobrevivência de si.
Na verdade, a preocupação com que o outro possa sobreviver
consiste apenas no “eu” que precisa ser reconhecido e ter
sua existência garantida. Ora, não que não seja
importante a preocupação consigo, mas o que se analisa
é a demasiada busca de autopreservação em detrimento
do que ocorre fora do próprio círculo. Nesse sentido,
o que temos é um projeto de transformação da sociedade
que visa ao particular, uma busca de razões políticas
que não se encontram em valores universais, mas interesses que
satisfaçam o prazer do indivíduo.

NA OBRA de Markus Zusak (1975) intitulada A menina que roubava livros,
romance narrado durante a Segunda Guerra Mundial, a morte é vista
como companheira. Em meio a tanto sofrimento, a morte é personalizada
como uma amiga para aliviar o peso da desgraça. Ela se encarrega
de carregar no colo as almas quentes, na frieza e no desespero da guerra
A preocupação da sociedade atual está desvinculada
do passado e do futuro, foca apenas no aqui e no agora. Temos, então,
indivíduos com medo de se perderem, que se agarram na busca frenética
de uma identidade que os satisfaça e lhes permita ser percebido,
e morrer é não mais ser percebido, daí o desespero.
Tais seres humanos não se percebem parte da História e
sua insegurança não se restringe apenas a questões
econômicas, etc., mas também ao medo de não conseguir
ser plenamente: “... a ética da autopreservação
e da sobrevivência psíquica está, então,
radicada não meramente nas condições objetivas
da guerra econômica, nas taxas elevadas de crimes e no caos social,
mas na experiência subjetiva do vazio e do isolamento”.4
Assim, a consciência de Narciso é o espelho, tão
externa a ele, tão transparente e líquida. Os gregos conseguiram,
no passado, mostrar a imagem que se destacaria no homem dos tempos pós-modernos,
que se perde na contemplação do objeto, procurando ali
o próprio sujeito, dessa forma, perde-se na procura de si mesmo.
O que chamamos aqui de Ética da sobrevivência. Para Lach,
“as pessoas deixam de sonhar com a superação de
dificuldades, mas simplesmente passam a sobreviver com elas”. 5
O mito grego de Narciso serviu como base de diversas
teorias no decorrer da História. O narcisismo é símbolo
da vaidade, do individualismo e da insensibilidade
A ideia do Narciso é uma maneira
de aprofundar o olhar no resultado das recentes mudanças no âmbito
da sociedade. Dessa maneira, o modo de vida atual é um auxílio
para fazer surgir novos “filhos narcisistas”; outro fator
impulsionante é a mídia, que, por meio do bombardeamento
de propagandas que incentivam a sobrevivência, realiza tudo isso,
potencializando os sonhos narcisistas, sendo eles os sonhos de fama,
sonhos de glória, voltando cada vez mais o olhar para o alto,
para as estrelas, para um mundo livre da maldição da contingência,
fugindo cada vez mais da realidade, finita e mortal.
Negação
da morte
Somos uma sociedade que a todo o momento
nega a morte, evita pensar no fracasso de nossa existência.
Mas as obras literárias nos defrontam com nossa tentativa de
negação e do fracasso desse projeto existencial. Temos
como exemplo a obra ficcional Dr. Frankenstein, que é
uma grande metáfora para uma reflexão sobre a condição
do homem no mundo e a inconveniência da consciência para
a nossa existência. Cabe lembrar que os homens existem e possuem
a consciência de existir, por isso percebem o real significado
da palavra “solidão”. Quando existimos, somos invadidos
por sentimentos até então desconhecidos, como medo,
tristeza, solidão e desespero. Somos lançados ao mundo
após a nossa criação, sem desculpas, sem muletas.
Então, juramos nos vingar do nosso criador e de todos ao seu
redor. Quando uma pessoa toma consciência de si mesma, surgem
perguntas que não possuem respostas. Não existe diferença
se você vive em uma casa cheia de pessoas ou em alguma geleira
do Ártico, a sensação é sempre a mesma.
Mas, ao matarmos nosso criador, passamos a reformular essas questões.
Na obra de Mary Shelley, o monstro encontra por acaso dois livros,
Os sofrimentos do jovem werther e o Paraíso perdido:
“Mal posso descrever-lhe, Frankenstein, o efeito de tais livros.
Apresentavam-me uma infinidade de novas imagens e sentimentos que,
por vezes, me elevavam ao êxtase, porém, com mais frequência,
me lançavam na mais profunda depressão” (passagens
retiradas do romance Dr. Frankenstein). No primeiro, ele encontrou
uma luz sobre as suas próprias reflexões. Os sofrimentos
do jovem Werther é um grande clássico da Literatura
e pode ser considerado como um dos precursores do Romantismo alemão.
O jovem Werther é dominado por uma paixão profunda,
tempestuosa, que o levará a um destino trágico. O protagonista
comete suicídio motivado por um amor platônico. É
importante ressaltar que o século XIX é marcado pela
supervalorização das paixões e dos sentimentos.
A vida é compreendida como sendo de dor e sofrimento eterno,
e somente a Arte, seja literária, arquitetônica, poética,
ou a própria Música, é capaz de causar uma catarse,
libertando o ser humano do sofrimento, mesmo que seja por alguns momentos.
Já no outro livro, a criatura vê na figura de Satã
um retrato pintado de si próprio. Na metáfora bíblica,
Satã é aquele que quer possuir o conhecimento absoluto
e, assim, luta contra Deus, sendo expulso do paraíso. Mais
tarde seduz o homem, levando-o a comer da árvore da Ciência
e do conhecimento, condenando-o por ter adquirido consciência
e capacidade de reflexão. Sendo assim, a saga humana é
uma odisseia de um peregrino que tenta retornar ao paraíso
perdido, ao eterno presente, à inconsciência de sua finitude,
e tenta em vão, através da Ciência, encontrar
um meio para esse feliz retorno: “Insensível criador!
Dotara-me de um cérebro e um coração, de percepções
e paixões, e me deixara ao léu, alvo do escárnio
e da perseguição da humanidade”.
O PODER INDIVIDUALIZADOR DA MORTE NUMA SOCIEDADE
DE MASSA
Ao analisarmos a morte na Antiguidade greco-romana, percebemos sua função
e lugar, e lá o direito de morrer é reconhecido. Tal direito
é que permitia aos enfermos desesperançados findar a própria
vida. Havia uma relação próxima entre a vida e
a morte.
Em nossa sociedade, a velhice, inevitavelmente, é caracterizada
com atributos negativos
Ao refletirmos sobre a palavra “paganismo” encontramos sua
derivação na palavra pagus, que significava o
pedaço de terra onde se plantava. Na Antiguidade greco-romana,
cada pagus possuía algo de sagrado, um espírito
que estava governando o espaço de terra. Tal espírito
era concebido como sendo de um ancestral da família que ali estava
sepultado. Assim, o enterro dos indivíduos amados tornava a terra
sagrada, o húmus era devolvido para o local de onde retornara.
O corpo morto, sagrado, tornava à terra sagrada. Nesse sentido,
no paganismo, havia uma supervalorização da morte.
Entretanto, com o surgimento do Cristianismo, a morte passa a ser substituída
pela vida. No paganismo havia o direito de morrer, já com a religião
cristã surge a sacralidade da vida, pois a vida é concebida
como um dom de Deus e, por isso, deve ser preservada. Essa visão
cristã ganha ênfase com a Modernidade, de tal maneira que
a vida deve ser privilegiada em detrimento da morte. Com o advento da
Modernidade, sob a guisa do pensamento do filósofo René
Descartes (1596-1650) e de Francis Bacon (1561-1626), o ser humano vive
um momento no qual se percebe capaz de realizar uma dominação
de tudo aquilo que está ao seu redor, controlando os fenômenos
da natureza. O mundo é visto “nu”, sem Deus, e o
ser humano, nessa perspectiva, não vê mais o universo circundante
como dominado por forças impessoais.
“Significa
principalmente, portanto, que não há forças misteriosas
incalculáveis, mas que podemos, em princípio, dominar
todas as coisas pelo cálculo. Isto significa que o mundo foi
desencantado. Já não precisamos recorrer aos meios mágicos
para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o selvagem,
para quem esses poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos
e os cálculos realizam o serviço.”6
Assim, o véu de mistério que cobria a realidade é
retirado. Pois, segundo Max Weber (1864-1920), o saber científico
avança sem confiar em qualquer valor misterioso, transcendente,
uma vez que tudo pode ser dominado pelo cálculo e, assim, a Ciência
liberta a humanidade de qualquer elemento religioso.
Na Antiguidade Clássica, a vida e
a morte estavam intimamente ligadas, essa relação só
foi modificada a partir da Idade Moderna
Weber chega a dizer que o desencantamento do mundo é uma característica
de nossos tempos, no qual as ideias religiosas se retiraram da vida
pública. E esse é um ponto importante, sendo que Weber
não diz que o intelectualismo elimina a religião, embora
possa corroer a imagem que ela fornece à realidade. Se, por um
lado, o ponto de partida da história da humanidade é um
mundo povoado de sagrado, de mistérios que são respeitados,
mas não explicados, o ponto de chegada é uma humanidade
moderna que afirma ter a capacidade de explicar com a Ciência,
acima de tudo com a razão, a compreensão do mundo que
está a sua volta. A realidade é encaixada no intelecto
humano (ou ao menos é isso que se tenta), e todo o resto é
deixado de lado. O ser humano se desenvolveu, progrediu, mas desencantou
o mundo.
A partir da Modernidade, percebe-se o início do abandono da morte,
que ganha ênfase na Contemporaneidade. Agora, o ser humano cada
vez mais se torna incapaz de olhar a morte. Para ampliar esse argumento,
pensemos no conceito de divertissement do filósofo Blaise
Pascal (1623-1662). Esse conceito não significa apenas distração,
ou divertimento. Mas, dado que o ser humano não tem condições
de enfrentar a sua mortalidade, escapando de encarar a morte, lança-se
no entretenimento de maneira a não pensar na sua finitude, porque
o ser humano é constituído de uma miséria ontológica
que o insere em uma consciência trágica sobre a própria
vida. Para boa parte dos seres humanos, é extremamente difícil
encarar essa realidade miserável, então preferem desviar
toda a sua atenção desses questionamentos e, para fazê-lo,
procuram, então, o divertimento. Segundo François Muriac
(1885-1970), comentador de Pascal, “o homem, por mais cheio de
tristeza que se encontre, se, por ventura, entrar num divertimento,
será feliz durante esse tempo; e o homem mais feliz, se não
estiver se divertindo e se entretendo com alguma paixão ou com
alguma distração que impeça de se espalhar o tédio,
ficará logo triste e infeliz. Sem divertimento não há
alegria, com divertimento não há tristeza. E o que forma
a felicidade das pessoas de grande condição é que
têm uma porção de gente para diverti-las, e o poder
de se manterem nesse estado”. 7
Segundo o historiador francês Philippe Áries (1914-1984),
o ser humano ocidental afastou e expulsou a morte de seu cotidiano.
A morte passa a ser reprimida e proibida dos nossos dias, pois ela é
percebida como algo extraordinário; sob tal perspectiva, a morte
não é normal e deve ser evitada. Ao analisar o contexto
contemporâneo, não é difícil constatar que
a morte está presente em nosso dia a dia, nos noticiários,
nos filmes, etc. E aí se coloca a questão: por que algo
tão natural nos causa tanto espanto? De um lado, o fenômeno
da morte é banalizado, escondido, mas, por outro lado, é
um desconcertante mistério, não é comparável
a outro fato, é único e desmedido.
A partir do século XX, a morte deixa
de ser “familiar”, “doméstica” e passa
a ser um “tabu”,
algo de que o homem Pós-moderno tenta fugir a todo custo
Entretanto, há aqueles que preferem se esconder na multidão
como se fosse possível fugir da finitude. Essa fuga ocorre em
meio a uma espécie de degradação cultural gerada
pelo nivelamento simplista das qualidades humanas. Pesa sobre nós
a “ditadura da massificação”, na qual a existência
individual se dilui na coletividade. Obviamente que a interpretação
de igualdade a todos não teve sua eficácia para a vida
em sociedade, uma vez que não há como tratar os indivíduos
de forma igualitária em um mundo constituído por diferenças,
seja no âmbito psicológico, social, filosófico,
etc. Um dos principais filósofos a discutir esse problema é
Ortega y Gasset (1883-1955), criador do conceito de homem-massa. Para
ele, “de repente a multidão tornou-se visível, instalou-
se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava
despercebida. Ocupava o fundo do cenário social; agora, antecipou-se
às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não
há protagonistas, só coro”. 8
Entretanto, a definição do homem-massa não está
ligada somente a parâmetros sociais, econômicos de maneira
específica, mas pela falta de critérios seletivos, pela
falta de espírito avaliativo e isento de sensibilidade cultural,
medindo sua existência por parâmetros quantitativos da ganância,
aliado à redução do gosto cultural. Assim, tal
indivíduo se contenta com pouco, com a vida simplista, imediatista
e sem grandes ideais. Para esse pensador, “massa é todo
aquele que não atribui a si mesmo um valor – bom ou mal
– por razões especiais, mas, que se sente como todo “mundo”
e, certamente, não se angustia com isso, sente-se bem por ser
idêntico aos demais”.9

PENSAR SOBRE A MORTE CAUSA CONFRONTOS COM
SUA REALIDADE MAIS PROFUNDA, POIS A MORTE TEM POTENCIAL SINGULARIZADOR,
ESPECIALMENTE NUMA SOCIEDADE DE MASSA
A recusa de discussões sobre a morte caminha nessa direção,
pois, ao aproximar-se da morte cada um necessitará se confrontar
consigo, com sua realidade mais profunda, porque a morte tem potencial
singularizador, especialmente numa sociedade de massa, no qual, muitas
vezes, parece que o coletivo se sobrepõe aos aspectos individuais.
Assim, a experiência da morte pode levar o ser humano a se perceber
como único, possibilidade que muitos temem, preferindo a moral
do rebanho. Para o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), é
por meio da angústia diante da morte que o indivíduo se
transforma de maneira radical, fazendo surgir sua autenticidade. Enquanto
o indivíduo se angustia, ele se destaca, singulariza-se, pois
só ele pode ser o que ele é diante da morte. Na morte,
sua existência se torna autêntica, e essa aceitação
da aproximação da nadificação implica olhar
de frente o não-ser.
A autenticidade surge a partir da consciência da finitude humana,
observando a morte como possibilidade da impossibilidade na existência.
Dessa maneira, pode-se projetar e edificar uma existência a partir
da superação do não-ser.
A Ciência, na Idade Moderna, surge como eminentemente
ativa
em contraposição à Ciência antiga que era
contemplativa
O medo é direcionado aos entes intramundanos. Já a angústia
não se refere a qualquer realidade imanente. Essa angustia faz
do Dasein um ser de possibilidade, pois é levado a se projetar,
a se construir, abrindo-se para a perspectiva futura, implicando na
noção de finitude. O futuro gera a consciência da
possibilidade da morte, que, por sua vez, leva o indivíduo a
realmente existir. Entretanto, numa sociedade massificada, a fuga da
morte é estrada certa como busca de realização
pessoal, e a morte passa ser sempre a morte do outro: “A interpretação
pública da presença diz: morre-se porque com isso qualquer
outro e o próprio impessoal podem dizer com convicção,
mas eu não; pois esse impessoal é o ninguém”.10
A morte faz parte da vida, carregamos ela conosco. “O fruto imaturo,
por exemplo, encaminha-se para o seu amadurecimento. No amadurecimento,
aquilo que ele ainda não é, de modo algum, se oferece
como algo que se lhe ajunta, no sentido de algo que ainda não
é simplesmente dado. O próprio fruto amadurece. O amadurecimento
e o amadurecer caracterizam-lhe o ser enquanto fruto. Não fosse
o fruto um ente que chegasse por si mesmo ao próprio amadurecimento,
nada que se lhe acrescentasse de fora poderia eliminar-lhe a imaturidade.
O ainda-não da imaturidade não significa uma coisa exterior
à qual, indiferentemente ao fruto, poderia ser simplesmente dada
nele ou com ele. O ainda-não indica o próprio fruto em
seu modo específico de ser.”11
Heidegger, deixa mais claro, ao dizer que “o ainda-não
já está incluído em seu próprio ser, não
como uma determinação arbritária, mas como um constitutivo.
Analogamente, a presença enquanto ela é, já é
seu ainda-não”.12 Para Heidegger
a morte plenifica a existência. Tal existência, que é
propriedade humana, implica uma abertura para a morte, caso contrário,
teremos uma existência inautêntica (uneigentlich),
possuindo uma vida superficial, encobrindo o ser. Esse esquecimento
do ser ocorre de maneira mais clara no século XX; segundo Heidegger,
o Dasein é um ser imerso na sua existência, um
ser no mundo (in-der-welt-sein) e tal estrutura ontológica
implica a inseparabilidade do ser humano e do mundo. Por isso o ser
humano não se encontra simplesmente no mundo, coisificado, como
um ente dado. Antes, mora nele, habita e existe no mundo.
NO MOMENTO
que o ser humano passa a ser senhor da natureza, caracterizado pelo
desencantamento do mundo, como diria Max Weber, e acima de tudo por
uma humanidade racionalizada, busca agir sem qualquer resíduo
que venha de concepções misteriosas e incalculáveis
Uma interpretação errada
da morte gera medo porque essa ligação seria desfeita
de maneira paralisante, especialmente numa sociedade em que o convívio
é pautado pelo afastamento do ser, e a noção de
vivência é caracterizada pela ditadura da impessoalidade.
A massificação do convívio dilui o eu, e a morte
é o resgate que ninguém quer perceber, pois a morte é
uma possibilidade de descoberta. Descoberta que petrifica o ser humano,
pois o medo humano não é endereçado a algo objetivo;
o que se teme, na verdade, é o próprio ser humano. Coisificamo-nos
na vida e escondemo-nos nas coisas, esperando delas uma espécie
de redenção, esperando que os entes façam por nós
algo que somente nós podemos fazer. Massificamos nossos sonhos
na esperança de que ao adquirir objetos nos eternizemos, garantindo
um minuto a mais de vida. Enfim, nós nos diluímos no todo
para que a morte não nos encontre. Mas, oras, nós fomos
feitos para a morte!
MORRER, UM TABU
O mundo ocidental levou a compreensão
da morte a um tabu, que deve ser afastado das crianças, levado
para longe das conversas, bem como tudo aquilo que seja traço
característico dos passos que antecedem a morte, como a enfermidade,
a velhice. Então, o medo diante da própria finitude se
transforma em pânico. Por isso os rituais de morte fazem parte
das sociedades, através deles se consegue “digerir”
o impacto realizado pela não existência de alguém.
Nós nos tornamos mais humanos quando percebemos que vamos morrer.
Essa consciência finita da morte repercute na vida. Vivemos para
morrer. Porque a morte vem nos perguntar sobre o sentido da nossa existência
e nos retirar da inércia do silêncio de não pensarmos
nossa própria condição.
A morte não deveria ser vista como uma surpresa, mas como uma
possibilidade sempre presente em nosso cotidiano, uma vez que ela ocorre
dentro do mundo, ela vem ao nosso encontro e nós vamos ao encontro
dela. Todavia, a impessoalidade não irá retirar essa condição,
não falar da morte não faz você mais imortal, não
o deixa menos atingido pela morte.
Uma reflexão sobre a morte realiza uma pausa na nossa trajetória.
Com isso, vemos a morte como uma necessidade existencial, ela nos capacita
para irmos além do que somos. Quem sabe teríamos na morte
mais humanidade, e não tanto uma espécie de castigo divino,
ela seria amiga, próxima, necessária. Assim, humanizaríamos
a morte, ela seria nossa, nossa necessidade.
A morte é uma proteção que desprotege. Tão
necessária, tão humana, tão nossa.

A sociedade contemporânea está vivenciando
a “cultura de massificação”,
na qual todo o destaque pessoal parece diluído
MATÊUS RAMOS CARDOSO, ESPECIALISTA EM ÉTICA
PELA FACULDADE DO NOROESTE DE MINAS, PÓS-GRADUANDO EM CIÊNCIAS
DA RELIGIÃO PELA UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES. PROFESSOR
DE FILOSOFIA NA ESCOLA TÉCNICA DO VALE DO ITAJAÍ (SC).
WELLINGTON LIMA AMORIM É DOUTOR EM CIÊNCIAS HUMANAS, PROFESSOR
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO.
Notas
1 ELIAS, 2001, p. 17
2 ELIAS, 2001, p. 11
3 LASCH, 1983, p. 37
4 LASCH, 1983, p. 77
5 LASCH, 1983, p. 75
6 WEBER, 1982, p. 165
7 MURIAC, 1975, p. 72
8 ORTEGA Y GASSET, 2002, p. 43
9 ORTEGA Y GASSET, 2002, p. 45
10 HEIDEGGER, 2005, p. 35
11 HEIDEGGER, 2005, p. 24
12 HEIDEGGER, 2005, p. 25
Referências
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da morte no Ocidente: desde a Idade Média. Trad. Pedro Jordão.
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edição, v. 1. Lisboa: Publicações Europa-América,
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ELIAS, N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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Fonte:
http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/87/artigo299834-3.asp
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