Momentos recentes da política
nacional trouxeram novamente a discussão da legalização
do aborto para a pauta nacional, em um contexto de polarização
entre religiosos e feministas/progressistas, nos debates inflamados
e até violentos, permeados por disputas eleitorais e de grupos
organizados de poder, onde vários movimentos religiosos cerraram
fileiras sob a questão da criminalização do aborto,
como se esse já não fosse um crime desde 1940, dada
a sua previsão nos artigos 124 a 126 do Código Penal,
em período que ultrapassa diversas gerações e
perceptíveis mudanças de costumes.
Nesses embates calorosos, observa-se
que terminamos por reduzir a luta em defesa da vida somente à
sua dimensão político-legislativa, que, a despeito de
sua grande importância como posição conquistada,
não encerra as questões subjacentes à interrupção
voluntária da gravidez, que na afronta aos mecanismos legais
e órgãos repressores continua a ocorrer no cotidiano
da clandestinidade e na opulência das clínicas luxuosas,
ou até na simplicidade de remédios caseiros oriundos
dos costumes populares, em um leque de soluções imediatistas
que calam a consciência no assassinato de vidas indefesas.
Assim, a discussão desse breve
artigo busca romper essa lógica enviesada de que apenas a luta
no campo legislativo dá conta da complexa questão da
defesa da vida, pois o titular da ação desse ato abominável
transita entre nós, no ambiente profissional, familiar, religioso
e urbano, exigindo de nós outras estratégias nessa luta.
Recente pesquisa da Universidade de
Brasília em parceria com o Instituto de pesquisa Anis, divulgada
em julho de 2010, revela que uma em cada sete brasileiras entre 18
e 39 anos já realizou ao menos um aborto na vida e que, dentre
o total de mulheres que declaram na pesquisa já terem feito
pelo menos um aborto, 64% são casadas e 81% são mães.
Foi levantado também que pouco menos de 11/12 (onze doze avos)
das mulheres que fizeram aborto são católicas ou evangélicas,
ainda que a pesquisa não cite os espíritas e outras
denominações menos presentes percentualmente e não
teça considerações sobre o nível de envolvimento
dessas mulheres com a prática religiosa professada.
Números surpreendentes e ainda
que venhamos a respondê-los com críticas sobre a pesquisa
universitária ser de origem materialista e que podem servir
de panfletagem pró-aborto, os dados ali expostos encontram
eco no cotidiano percebido, inclusive em grupos de declarada fé
religiosa. Curiosamente, outra pesquisa, noticiada pelo Portal IG
em 5/12/2010, indica que a rejeição à ideia do
aborto tem altos patamares, tanto entre religiosos (86% dos evangélicos
rechaçam a ideia) como entre os que dizem não ter religião
(78%).
Esses dados nos conduzem à
reflexão e nos servem de alerta para a questão de que
o titular da ação abortiva não é uma mulher
estereotipada, materialista, andando à margem da sociedade
pelas esquinas e becos. Indicam tratar-se de pessoas comuns, com famílias
e com religiosidade declarada socialmente. Na dicotomia do “contra”
x “a favor”, ainda que a opinião geral seja contra,
na verbalização de uma luta que julgamos ser exógena,
no cotidiano essas mesmas pessoas praticam o aborto.
A questão é que esse
problema está inserido na sociedade, e nos incluímos
nesta como espíritas, devendo em nossas ações
focar esse titular da ação abortiva e as suas motivações,
onde podemos citar pesquisa realizada nos EUA em 2004 que apontam,
entre outras: eu não estou pronta para uma criança,
eu não tenho condições financeiras, eu não
quero ser mãe solteira, eu não sou madura o suficiente
para cuidar de uma criança, um bebê iria interferir na
minha educação/carreira, eu não quero que os
outros saibam que eu tinha relações sexuais, meu marido/namorado/pais
querem que eu aborte.
Essas injunções cotidianas
refletem valores, onde o genitor e a genitora adotam essa linha de
ação como solução, em um teste real de
sua crença viva, o que é muito mais consistente que
uma mera opinião apresentada diante dos amigos.
Nesse ponto, devemos olhar de frente
a questão e refletir que, se realmente defendemos a vida, se
queremos reduzir as estatísticas abortivas no país,
devemos focar no titular da ação – feminino ou
masculino, este pela sua influência – para que nas horas
decisivas, dos problemas do mundo concreto, ele possa agir como cristão,
encontrando estofo na sua fé para não adotar a porta
larga asseverada por Jesus.
Fugir dessa discussão é
admitir que ela pertence ao cotidiano dos ateus-materialistas e que
ela não se faz presente, de forma casuística, nas fileiras
religiosas, inclusive nas nossas; e que apesar da defesa aguerrida
no plano do discurso, miramos os outros de forma a ocultar a gama
de conflitos da vida humana, que a prática religiosa auxilia
no enfrentamento, mas não nos isenta deles, como bem nos lembrou
os dados da pesquisa da Universidade de Brasília.
Assim, a discussão desse assunto
nas palestras públicas, nas aulas de evangelização
e nos demais círculos de estudo, não deve desconsiderar
essa realidade, desse público alvo posto entre nós e
não oculto nas trincheiras do mundo exterior à casa
espírita, já que se trata de um problema grave, concreto
e que merece enfrentamento da melhor maneira possível.
Assim, na campanha a favor da vida,
na idealização do titular da ação e de
suas motivações, que o levam a realizar essa intervenção
dolorosa e homicida, não nos esqueçamos de olhar para
a comunidade que nos cerca, promovendo a reflexão sobre o assunto
em nossas casas e templos, para que a visão da questão
não seja mais uma posição polarizadora em um
tema polêmico, que defendemos em momentos públicos peculiares,
mas sim uma postura vivida no plano real, onde Jesus e os amigos espirituais
conhecem muito bem cada um de nós.