
Estava eu, dirigindo na engarrafada
Avenida Brasil, em uma dessas manhãs ensolaradas, quando
me deparo com o adesivo no carro da frente, com os dizeres gritantes:
“Em nome de Jesus, muita safadeza se produz”,
frase de efeito, um tanto chula, é fato, mas que me remeteu
imediatamente a outra frase famosa na internet , “Jesus
é gente boa, o que estraga é o fã clube“,
expressões emblemáticas da decepção
vigente com as religiões e as suas sucessivas deturpações
dos seus espíritos originais, adaptados não à
realidade, mas às conveniências, fraquezas e ambições
do ser humano, e seus jogos de poder.
Nesse movimento de deturpação, trocamos sem cerimônia,
na História da humanidade, o amor pela graça, a plenitude
pela salvação, a confiança pela fé cega
e seguimos, de forma conveniente, adaptando verdades, calando o
nosso bom senso, chegando a conjecturas ridículas, que viram
verdadeiras piruetas filosóficas para adaptar escritos religiosos
aos nossos conceitos. Vou abster-me de enumerar tais situações
para evitar controvérsias estéreis, mas sabemos que
essas manobras passam por questões de sexualidade, igualdade
social e mitigação de conceitos humanistas.
Entretanto, nós outros, defensores das ideias do pedagogo
francês que viu seus livros queimados em praça pública,
que soube revolucionar paradigmas de forma coerente e pacífica,
também padecemos de nossas fixações deturpatórias,
inebriados por uma ideia de disciplina, de ordem, de padronização,
em uma postura vestal e por vezes alienada do mundo real, e nesse
sentido, destacaremos no presente artigo um grande instrumento de
opressão e segregação nas fileiras espíritas:
a pureza doutrinária.
Justificado pela observância dessa pureza, que busca catalogar
atos e fatos como doutrinários ou não, com vieses
na prática no qual o próximo de uma cultura afro não
recebe o mesmo tratamento de algo na linha cristã-ocidental,
cometemos violências simbólicas de censuras, proscrições
e banimentos. Fazemos da pureza doutrinária o que é
e já foi a Bíblia, tratada como escritura sagrada,
imutável régua a medir a tudo e a todos.
Espere…espere! Entendi bem, ou na constante pressão
que sofremos no movimento espírita com a possibilidade de
invasão de práticas estranhas, você autor está
defendendo uma liberação geral de tudo e de todos,
um supra relativismo, um grande “pan-espiritismo ecumênico”,
no qual caiba tudo, independente dos ensinos kardequianos, agregando
práticas e ideias de toda ordem, em especial ao gosto do
freguês?
Não. Definitivamente não…
Se estivesse propondo isso, seria compactuar com uma mercantilização
religiosa, de agradar os demandantes, adaptando-se para se expandir.
O que defendo aqui é que não precisamos de bulas papais
ou comissões inquisitórias que classifiquem saberes
à luz de suas interpretações, sem debate, de
forma hierárquica. O que aponto é a necessidade de
se fortalecer o diálogo crítico em relação
às práticas e que sejamos caridosos nessas relações,
respeitando as pessoas e as suas peculiaridades.
Falando do aspecto caridoso, inicialmente,
até resgatando a ideia inicial de deturpação
apresentada no artigo, cometemos absurdos em nome dessa pureza doutrinária.
Somos duros, rígidos, encapsulados em relação
às pessoas, mais preocupados com a forma e menos com o conteúdo,
alheios às necessidades de cada um, tentando encontrar uma
doutrina estática e universal, o que seria uma grande pretensão,
vinculando todos a nossas interpretações. Um caminho
perigoso, de autoritarismos…
E isso gera, por vezes, um patrulhamento
doutrinário diretivo, que poderia ser substituído
pelo debate franco sobre as ideias ali postas. Exemplo dessa atitude
última é a de amigos do movimento que mantêm
página na qual discutem abertamente a pertinência de
determinadas obras, em face à profusão de literatura
mediúnica na qual vivemos. Tem-se ali um debate, no qual
se argumenta e se expõe o que daquela obra é incoerente
com a lógica e com os postulados espíritas. Exercita-se
assim, de maneira fraterna, o chamado diálogo crítico.
E no que se refere ao diálogo
crítico, complementando a ideia do parágrafo anterior,
a força de nossas convicções é a análise
racional dos atos e fatos à luz de nosso paradigma, entendendo
que, como dizia Gibran na sua obra “O profeta”, não
diga que encontrou a verdade, e sim uma verdade. Sim, o espiritismo
não é e nunca se propôs a ser estático,
a verdade absoluta, mas isso não faz dele uma panaceia que
tudo absorve. É preciso estudar e refletir, e não
consumir pacotes prontos do que é bom ou ruim, e nisso está
a capacidade de sobrevivência do espiritismo.
Por isso, o espaço do doutrinário
ou não doutrinário deve ser substituído, ao
meu ver, pelo espaço do razoável ou não, do
coerente ou não, ampliando-se discussões, abertos
a realidades, para que se enxergue sem medo o que anda por aí,
e que pensemos que torcer a cara sem nem saber direito do que se
trata, ou abraçamos algo por que o médium “X”
disse que é bom, é um raso olhar classificador binário,
cabendo-nos entender o que daquilo fere o bom senso, mas respeitando
aqueles que encontraram ali a sua verdade, rompendo as barreiras,
como um certo francês que se recusou a crer que eram as mesas
que falavam.
Afinal, esse é o segredo
da convivência pacífica entre ideias, da chamada tolerância
religiosa, ou mesmo das discussões ditas como ecumênicas.
Entender esse contexto de ideias que surgem e que devem ser analisadas
e discutidas, com respeito e humildade. Ideias religiosas, ideias
do mundo. No mundo da ciência e do conhecimento, tudo muda,
tudo se molda. Por isso, a ideia doutrinária e religiosa
se impõe à força, dilema que o Espiritismo
vem romper com uma “fé raciocinada, capaz de enfrentar
a razão em todas as épocas da humanidade”,
e isso gera uma constante reavaliação crítica.
Ilustrando essa assustadora possibilidade de mudanças, nos
servimos de Thomas Kuhn, um estudioso que vincula a ciência
à resolução de problemas em um determinado
contexto, do qual emergem verdades em um paradigma, verdades úteis
naquele grupo/momento e que podem ser substituídas por outras
verdades, diante de situações que surgem. A ciência,
para esse autor, se faz em ciclos, nos quais a ciência normal
irrompe em crises, revoluções e depois volta a uma
nova ciência normal, com o abandono do antigo paradigma e
a adoção de um novo, cujos entendimentos sobre conceitos
antigos se modificam, não sendo possível interpretar
o novo sem uma nova visão, sendo, então, paradigmas
incomensuráveis, ou seja, que não se comunicam.
Nesse sentido, uma visão
doutrinária hermética e autoritária é
um consenso momentâneo de Kuhn, que pode ser minada pela realidade,
aquela que não nos pede licença para romper nossos
paradigmas e impedir a nossa fossilização, cabendo
a nós ter a mente aberta e afiada criticamente para analisar
o que surge – mas com o respeito caridoso por outras verdades
– e bom senso para ler as forças e os interesses que
acompanham cada nova proposição.
Então já posso acender
meu incenso na casa espírita ou estudar o levítico
nas reuniões doutrinárias, alternado pelo Torá?
Bem, o Espiritismo é uma visão de livre consciência,
mas a casa espírita é um local de estudo da Doutrina
Espírita. O único e especializado local para isso!
Nessas casas construímos a relação desse conhecimento
espírita com as realidades que se apresentam, respeitando
outros saberes e visões, incorporando o que couber à
sua lógica, entendendo que aí sempre existem consensos
e jogos de força. O que se disse aqui é que estamos
distantes de ter uma verdade plena e que cometemos muitas coisas
reprováveis em nome de manutenção destas pretensas
verdades.
Por isso estudamos e refletimos,
não cuidando de decorar trechos de livros como textos sagrados.
Essa é a essência espírita, na qual o conceito
vale mais que a letra. Se ficarmos estáticos diante dos conceitos
que explicam a realidade, não alcançaremos o saber
profundo, buscando discutir filigranas de nosso paradigma vigente
e fechados ao que surge na realidade à luz de nossa visão.
Precisamos de reflexão, humildade e uma mente aberta, para
fazer essa relação tríplice de filosofia, ciência
e moral (ética), entendendo que os efeitos são relevantes
para que a pureza doutrinária não seja, pela sua dureza,
um revival de tempos inquisitórios, deturpando a
essência do Espiritismo como uma ferramenta filosófica
de homens melhores, trabalhando a sua espiritualidade, guiados pela
razão e com espírito investigativo.