O humor em toda a história
da humanidade teve como propriedade romper estruturas, questionar
poderes e permitir ao homem por vezes rir da sua própria
tragédia, de suas situações ridículas,
típicas da natureza humana, viajor da estrada da evolução.
Rir para refletir, refletir para contestar e contestar para agir!
O contexto atual não é diferente. A internet tem servido
de canal para mensagens, vídeos e situações
engraçadas, algumas replicadas em programas televisivos.
Dessas, se destaca recentemente pela sua audiência o “Porta
dos Fundos”, que nos fornecerá por meio de um de seus
vídeos, contando na data de confecção desse
artigo, com mais de 4,5 milhões de visualizações,
uma profunda reflexão no campo religioso.
O vídeo a que me refiro,
intitulado “Deus”, mostra em seus quase quatro minutos
a história de uma jovem que ao desencarnar descobre que o
céu correto era aquele suportado por uma doutrina de povos
tribais da Polinésia, ilhas retiradas no Oceano Pacífico.
Ou seja, que o Deus certo a se acreditar era o “Deus da Polinésia”
e, como ela escolheu o Deus errado, estava fadada a perdição
no fogo do inferno, por não ter se filiado à escola
religiosa correta. Assim, a jovem incauta descobre, ante a pilhéria
de um caracterizado Deus polinésio, que o fato dela ter seguido
os ritos de sua religião, como ir à missa semanalmente,
não foram úteis na sua salvação.
Piadas a parte, rimos do absurdo
que não é tão irreal assim. A ideia de um Deus
certo, de um povo eleito, como caminho exclusivo da salvação,
permeia a teologia de crenças predominantes no globo terrestre
e comparece de forma incidente em discursos e textos, onde achamos
normal tudo isso, rindo ao mesmo tempo do Deus da Polinésia.
Afinal, os polinésios são tão primitivos...
E pior, essa ideia vincula a crença e a salvação
a práticas exteriores, a filiação a grupos,
subordinando a divindade a agremiações humanas ou,
ainda, a adesão a determinadas ideias.
A dramaturgia portuguesa da era
de Cabral, no texto teatral do “Auto da Barca do Inferno”
de Gil Vicente, já indicava ao Sapateiro que pergunta ao
diabo no momento pós-morte: “Quantas missas eu ouvi,
não non hão elas de prestar?”, eis que recebe
como resposta: “Ouvir missa, então roubar, é
caminho per'aqui”. Sempre perturbou a humanidade, em seus
conceitos mais naturalistas de justiça, a ideia de que apenas
algum povo nesse “mundão de meu Deus” possuísse
a chave da salvação e que o bem proceder não
lhe adiantasse de nada. Porém, a religião sempre extrapolou
os papeis de ligação com a divindade, servindo de
instrumento de poder e de dominação.
Entre as lutas pelo poder terreno
e as disputas econômicas, serviu a religião como elemento
ideológico que motivou (e motiva) guerras, dissensões,
atentados, opressões e toda ordem de ações
contra a humanidade, pela promessa da salvação e pelo
medo da perdição. Discursos e jogos de palavras, doutrinas
e hábitos que formam a identidade de grupos, prometendo a
seus membros o paraíso diante das agruras da vida terrestre,
tornando a todos obedientes e mantendo a razão distante,
isolada lá nos rincões da Polinésia.
Jesus, nesse sentido, foi revolucionário.
Ele colocou a chave da vida em amar ao próximo como a si
mesmo. Kardec, estudando as palavras do Mestre, indicou de forma
ampla que fora da caridade não há salvação.
Fórmulas que se aplicam a qualquer tempo, a qualquer local
e a qualquer pessoa, independente de crenças, de dogmas,
de rituais ou de filiação a grupos. Amar, simplesmente,
como se isso fosse de alguma forma simples. E a religião,
esta tem nesse contexto um relevante papel de agregar valor à
nossa capacidade de amar, para que sejamos reconhecidos como discípulos
do mestre por essa característica. O que fugir disso é
acessório, longe do essencial que é invisível
aos olhos.
Como assevera também Kardec
n’ O Evangelho segundo o Espiritismo, a ideia do “Fora
da caridade” se assenta num princípio universal e abre
a todos os filhos de Deus acesso à suprema felicidade. Reflete
assim a visão de um Deus justo, bom, pai de todos, sem predileções
ou povos eleitos. Podemos acrescentar que a visão de evolução
e de vida após a morte é uma decorrência da
nossa visão de Deus, e o Espiritismo, de forma coerente,
assim se posiciona. Deuses vingativos, com preferências, defensores
de determinados grupos, em um arremedo de antropomorfismo, decantam
em teologias salvacionistas e segregacionistas, enxergando irmãos
e não-irmãos.
Assim, como espíritas temos
nessa singela peça de humor disposta na internet uma oportunidade
ímpar de reflexão, sobre o que trazemos na nossa consciência
em relação ao que realmente importa na vida ou se
descansamos em berço esplêndido na prática religiosa
morna, que iria nos garantir o acesso às benesses do paraíso.
Esquecemos, por vezes, que o Espiritismo nos coloca que a vida é
trabalho em ambos os planos da vida e que a criatura constrói
seu processo de evolução, no tempo e ritmo definidos
pelo seu esforço e pela sua vontade. No Espiritismo, há
céu para todos, mas há também inferno, quando
alojamos em nós os caminhos para esses estados de espírito.
A filiação à
casa espírita, a prática das atividades doutrinárias,
tudo isso não nos faz diferentes ou melhores que ninguém;
nos faz melhores que nós éramos, se interiorizarmos
aqueles ensinamentos. Não temos privilégios e temos
amparo, como tem apoio da espiritualidade nossos irmãos da
Europa, da África e, também, da Polinésia.
Assim, nossa religião não nos garante a salvação,
mas se apresenta como uma das ferramentas de apoio à nossa
evolução como encarnados, assim como são as
outras religiões ou, ainda, a família, a escola e
tantas outras oportunidades que surgem.
Difícil pensar assim... Afinal,
nos esforçamos, vamos à casa espírita toda
semana, tomamos o passe, bebemos a água fluída. E
ainda assim, nada nos garante. Garante-nos, ainda tomando emprestado
o pensamento kardequiano, o esforço por uma conduta reta
e se tudo isso – água, passe, reunião –
não contribuir para o projeto maior do “Homem de bem”,
voltaremos às antigas fórmulas de sepulcros caiados,
das quais já fomos advertidos há mais de dois milênios
pelo meigo nazareno. O Espiritismo traz um novo paradigma religioso,
e não apenas uma transposição de práticas
de outras religiões, com outros nomes.
Por isso tudo, achamos graça
do Deus da Polinésia, de suas exigências ridículas
para garantir o acesso ao paraíso. Achamos graça da
forma que nós vemos Deus, que não é muito distante
da divindade pintada pela genialidade dessa peça humorística,
mas que, se observada com os “olhos de ver”, pode nos
trazer uma reflexão, que, de cômica, passa a ser perturbadora,
de que a senda da evolução é complexa e que
demanda de nós muito mais que fórmulas exteriores,
em um compromisso nosso com a divindade, forjado no momento de nossa
criação.