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Sentidos do festejar
A diversidade e uma das características
marcantes da Cidade. É o que lhe imprime contorno e ritmo únicos.
Nela convivem todas as possibilidades de expressão criadas pela
cultura, seja em termos concretos, como os espaços físicos
construídos em formas e materiais distintos, seja em termos simbólicos,
como as estéticas, religiosas, arquitetônicas e outras.
A dificuldade em se estabelecer uma idéia da metrópole
como totalidade, devido à sua extrema heterogeneidade, tem dado
origem a diferentes sentimentos e abordagens desta oferta de alternativas.
Em poucas palavras, os que analisaram a cidade dividiram-se em dois
grandes grupos: o dos autores que viam no modo de vida urbano um fator
de desintegração dos valores tradicionais (como a família
e a religião) e o dos que viam este modo de vida não como
desintegrador, mas gerando um novo padrão cultural, surgido da
diversidade: o da sociedade secular, racional, cujas relações
se baseariam em interesses práticos e onde os valores tradicionais
seriam substituídos por outros, mais adequados a esta formação
social moderna, que substituíra o teocentrismo pelo antropocentrismo.
Apesar de ainda muito aceitos atualmente (basta lermos os jornais: a
vida nas cidades é sempre apontada como a causa da violência,
da solidão, das neuroses, da alienação, dos comportamentos
desviantes etc.), os pressupostos destes autores não resistiram
a uma análise em profundidade, como mostraram pesquisas posteriores.
Notou-se, também, que "toda a atmosfera [das análises
da cidade] era fortemente reminiscente do mito da expulsão do
homem do paraíso" e do começo da vida social e histórica.
O homem não poderia voltar a uma "doce vida rural"
e deveria suportar as durezas da vida urbana "no suor do seu rosto",
apesar de o desejo inconsciente de retornar ao edênico mundo do
campo emergir constantemente. Ruben Oliven observa que na Bíblia
o surgimento da primeira cidade está diretamente ligado ao primeiro
homicídio, portanto à violência, à transgressão,
à infelicidade (OLIVEN, 1982: 22). A vida nas cidades ocidentais,
marcadas pela cultura judaico-cristã, é vista então,
simbolicamente, como o afastamento do homem de Deus e do Paraíso
(sempre descrito como bucólico, campestre, imagem logo associada
ao meio rural). Este "afastamento de Deus" encontra seu correspondente
no pressuposto da secularização. Quase todos os autores
que estudaram a cidade viram nela a tendência ao afastamento da
religiosidade, especialmente quando o capitalismo e sua consequente
racionalização do tempo e das relações sociais
impregnassem o modo de vida de seus habitantes. Mais ainda nas cidades
industriais. No Brasil, contudo, em termos empíricos, as coisas
não se passaram absolutamente assim. A cidade brasileira mostrou-se
profundamente religiosa, festeira e criativa em termos de alternativas
de convivência com a tendência homogeneizante da cidade.
(...)
Grupos religiosos também
fazem grandes festas: os umbandistas festejam no Ginásio do Ibirapuera
o orixá guerreiro Ogum (São Jorge) e, em várias
ruas da periferia, São Cosme e São Damião. São
universais as festas católicas de São Judas Tadeu, Santa
Rita de Cássia e Santo Antonio nos bairros de São Judas,
Pari e Centro, respectivamente. E há muitas festas mais, de grupos
ou não, que seria impossível indicar aqui, como o Carnaval,
as Micaretas, o Dia da Pátria, a Páscoa, Reisados, Festa
do Divino etc.
Se a festa nega a submissão do povo ao poder instituído,
ao prover suas próprias necessidades ela usa, quando possível,
este mesmo poder para conseguir realizar-se. Pede-se ao Serviço
Viário que interdite ruas, às Administrações
Regionais, à Companhia de Energia Elétrica e às
empresas, que divulguem ou financiem alguma coisa. Muitas vezes até
mesmo a presença de políticos é bem vinda, pois
dá ao evento uma importância maior perante os grupos "adversários"
ou perante o público em geral.
Como fato social total que é, a festa engloba as esferas de sentido,
transcendência, política, lazer, estética, tradição,
trabalho etc. Em alguns casos pode ser também uma forma de resistência
sob a aparência de alienação. É o caso da
festa de candomblé. Para o povo-de-santo, grupo formado em sua
maior parte por uma população menos favorecida economicamente
e mais fechado, ela chega mesmo a definir os contornos de um estilo
de vida que distingue, pelo gosto particular que o informa (o amor à
dança, à música, a sensualidade, o ludismo, o "desperdício",
o excesso, elementos definidores da Festa), aqueles que aderem a ele
do restante da sociedade, como veremos agora.
A Festa de Candomblé em São Paulo
Desde os primeiros estudos, os autores que investigaram os cultos afro-brasileiros
nas diferentes regiões do país, como o candomblé
baiano, o xangô pernambucano, o tambor de mina maranhense, o batuque
gaúcho e a macumba carioca, constataram a realização
de festas onde os grupos religiosos se reuniam para a louvação
a seus deuses, que nestas ocasiões possuíam em transe
aqueles que para eles eram iniciados.
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- A pesquisa que embasa este
artigo publicado originalmente em Magnani, J.G. & Torres,
L. L (orgs.) Na Metrópole Textos de Antropologia
Urbana (EDUSP, 1996) foi financiada pela Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq).
Ver, também: Amaral, Rita, Xirê! o Modo de
Crer e de Viver do Candomblé (Pallas 2002) e Povo-de-Santo,
Povo de festa. O estilo de vida dos adeptos do candomblé
paulista. Dissertação de Mestrado. USP,
1992.
Rita Amaral
é antropóloga do Núcleo de Antropologia Urbana
da USP, doutora em antropologia social, Ph.D em etnologia afro-brasileira
pela USP
Fonte: http://www.n-a-u.org/Amaral-1996-a.html
Leia de Rita Amaral
Cidade
em Festa: o povo-de-santo (e outros povos) comemora em São Paulo
Deixando
o ruim de lado - origens do Carnaval
O
tempo de festa é sempre
O
tombamento de um terreiro de candomblé em São Paulo
Rita Amaral, e Vagner Gonçalves da Silva
Cantar
para subir - um estudo antropológico da música ritual
no candomblé paulista
Religiões
afro-brasileiras e Cultura Nacional: uma etnografia em hipermídia