PREFÁCIO À TRADUÇÃO
A ideia de prefaciar esta tradução
de O Livro dos Espíritos para Português luso,
por deferente convite dos Editores, quase intimidou a desvalia intelectual
do convidado. Com fortes razões: a grandiosidade da Obra original
de 1857, pelo conteúdo e metodologia inovadores; a sua tradução
esmerada, fiel, valorizada com notas dos eruditos Tradutores a contextualizar
cultural e semanticamente, nos nossos dias, alguns termos de há
século e meio.
Jamais nos demitamos do dever de gratidão ao Brasil, pelas
diversas traduções (somando, juntas, muitos milhões
de exemplares editados) que facultaram ao leitor português a
obra colossal de Allan Kardec; convenhamos porém: a tradução
que ora ouso prefaciar supre finalmente uma nada lisonjeira omissão
editorial lusitana, tão longa e desconfortável aos nossos
brios.
Dizer grandiosa e transcendente a obra traduzida, O Livro dos
Espíritos, nada tem de exagero. Ela integra um pentateuco
hodierno de que é o volume basilar, e configura um relevante
marco civilizacional judaico-cristão de cultura universal.
Sagra-se como a terceira dum ciclo de grandes revelações,
iniciado com Moisés e aperfeiçoado por Cristo. Mas…
revelação agora em estilo direto, lógico, assertivo,
coerente com a profundeza latente das duas precedentes; uma revelação
já não necessitada de alegorias e formalismos requeridos
outrora pelo verdor evolutivo do Homem. Enfim, uma revelação
sobre factos e leis naturais sistematizados
com inatacável metodologia científica. Consistente,
elucidativa, ela emerge vigorosa duma época onde o racionalismo,
inebriado pela emancipação da opressiva tutela eclesiástica,
derrapava no materialismo presunçoso que decretou “a
morte de Deus” e entronizou a Deusa Razão.
Ante cenário tão perturbador, a religião instituída
reagia infantilmente. Em 1861, em Barcelona, a Santa Inquisição
cremava piamente, em público, uma remessa de trezentos livros
espíritas oriundos de França (demência repressiva
que só promoveria a Doutrina dos Espíritos, onde revive
pujante a Boa Nova de Jesus). Em 1870, Pio IX, com o desastrado Concílio
Vaticano I blindou em dogma a sua “infalibilidade”, e
calou minaz, autoritário, a sensata oposição
do bispo Joseph Strossmayer e dezenas dos seus pares. Entretanto a
imparável Terceira Revelação alastrava na Europa
e no Mundo, luz serena de bom senso e racionalidade, vergando à
eloquência dos factos a dura cerviz do paradigma mecanicista-materialista,
tal como o não menos duro paradigma religioso da fé
cega e sectária (Tertuliano: credo quia absurdum,
creio porque é absurdo), que pontificou por mais de mil anos
até ao primeiro questionamento, o saudável princípio
do livre exame luterano.
Da contradição dialética entre a tese tertulianista
da fé cega e a antítese materialista
do racionalismo cartesiano-newtoniano, a
Terceira Revelação extrai fecunda síntese: a
fé raciocinada, luz que de algum modo vemos
fulgir também, cem anos depois, no princípio da liberdade
de consciência estatuído no refrescante Concílio
Vaticano II (1962-1966, convocado pelo ecumenismo salutar do bom papa
João XXIII, cristianíssimo, sequioso de converter a
sua igreja para Cristo, audaz empreendedor dos primeiros passos nesse
sentido. Brutalmente impedido João Paulo I de os continuar,
só os retomou o também grande cristão Papa Francisco,
um resoluto e cativante Mikhail Gorbatchev do Vaticano).
O poderoso impulso benfazejo da Terceira Revelação não
deixaria incólume a quase sacralidade da ciência convencional.
Muitos académicos prestigiosos (ao contrário da maioria
deles) compreenderam e acolheram individualmente a surpreendente Revelação,
depois de a testarem com rigor. Um dos maiores do século 19,
Sir William Crookes, empenhou-se de 1870 a 1874 em exaustiva e frutuosa
investigação à mediunidade da então famosíssima
Florence Cook, com intenção inicial de dissecá-la
e explicá-la à luz da ciência académica.
Mas, rendido à límpida evidência dos factos, verificados
e reverificados, relatou em sucessivos números do Quarterly
Journal of Science as minúcias da experimentação
rigorosa que conduzia. Estarreceu os seus pares na London Royal
Society com a declaração tornada célebre,
acerca da fenomenologia espírita investigada: “Já
não digo que tais factos são possíveis, afirmo
que eles são reais”.
O sadio abalo ao mundo científico não poupou o núcleo
duro do materialismo: Engels, culto e perspicaz parceiro inteletual
de Karl Marx, não pôde ignorar na Dialética
da Natureza a impecável investigação espírita
de Sir William. É certo, não a aceitou nem abonou; mas
não tendo como refutá-la, abandonou airosamente o assunto
(que desconstruía pela base a sua paixão intelectual,
o materialismo histórico), alegando possibilidade
duma porta secreta no recinto das experiências, a qual poderia
permitir à equipa de Crookes enganar ou ser enganada. Os artigos
científicos deste, sobre a mediunidade que investigou, foram
mais tarde compilados e editados em livro pela Federação
Espírita Brasileira (Factos Espíritas _ em
Português, Castelhano, Esperanto e outras línguas). Nunca
antes ou depois disso, que se saiba, alguém lhes impugnou a
veracidade ou sequer pôs em dúvida a probidade intelectual
do laureado sábio britânico, falecido em 1919. Há
porém que reconhecer um mérito a Frederico Engels: a
sua tímida abordagem à Terceira Revelação
foi feita num contexto de natureza (não de
religião nem filosofia), e implicitamente assim acompanhava
uma noção básica do Espiritismo, que encara sempre
como naturais (sem nada de sobrenatural)
os fenómenos espíritas.
Com o impacte salutar da Terceira Revelação e ante a
evidência de fenómenos que não podia negar, nem
conseguia explicar, a ciência convencional viu-se compelida
a investigá-los. Ainda no século 19, surgia na França
a disciplina científica da Metapsíquica, com Charles
Richet; e no século seguinte: a Parapsicologia, na Universidade
de Duke, USA (professores Joseph e Louise Rhine); a Psicotrónica,
Universidade de Leninegrado, URSS (professores Raikov e Vasiliev).
Tais ciências, mesmo quando teimam em situar no cérebro
humano a razão e fonte da fenomenologia paranormal, constituem
sem dúvida um progresso para a Humanidade.
Em 13 de Março de 1971, com chamada na primeira página,
o “Diário de Notícias”, de Lisboa, informava
sobre uma cadeira de paranormologia regida pelo padre Andrea
Resch, no Instituto de Latrão. Em rápida visita à
Internet com a chave “paranormologia + prof andrea resch”,
constata-se por exemplo que Paulo VI criou em 1970 a Pontifícia
Universidade Lateranense (de Latrão) e a cátedra
Paranormologia; que o termo paranormalidade foi introduzido
pelo redentorista Andrea Resch, docente de psicologia clínica
e paranormologia; e ser o referido padre um “convicto espiritista”.
(Disto, permita-se-me duvidar: um espírita medianamente culto
distingue bem entre afincado estudo ou mesmo docência dos fenómenos
paranormais, e ser-se convicto espiritista, ou espírita). Não
se deixa porém de cismar: Roma sabe hoje muito mais sobre tal
matéria, do que permite imaginar o seu historial de proibições
e condenações, mais o galardão aos livros
da Doutrina Espírita, que relegou ao Index librorum prohibitorum
de triste memória (suprimido _ louvado seja Deus!_ após
o fecundo Concílio convocado por João XXIII).
Estas pinceladas de historiografia contemporânea, e também
mais recente, procuram dar alguma ideia da grandiosidade providencial
e ativa da Terceira Revelação, chave para tantos “enigmas”
e para entendermos a atual fase de óbvia transição
vivida pela Humanidade terrena. Apresentado agora em Português
de Portugal o livro-base de tão significativa Revelação,
feliz augúrio dum labor a continuar _ bem hajam, senhores Tradutores
e senhores Editores, pelo relevante préstimo à nossa
comunidade.
Allan Kardec, Codificador do Espiritismo
Imagem/fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Allan_Kardec_L%27Illustration_10_avril_1869.jpg